Nos últimos meses, um caso específico reacendeu o debate sobre o uso de ferramentas automatizadas na análise de nomes comerciais de medicamentos. Trata-se de uma situação em que um pedido de registro foi objeto de exigências quanto ao nome comercial indicado, embora o nome em questão já tivesse sido anteriormente aprovado e utilizado no mercado por mais de uma década de forma segura, sem qualquer histórico de risco sanitário ou confusão na dispensação.
O episódio ilustra um desafio regulatório importante: como equilibrar o uso legítimo de instrumentos tecnológicos de apoio à decisão, como o sistema POCA (Phonetic and Orthographic Computer Analysis), com a consideração da experiência concreta de mercado acumulada ao longo do tempo. A questão não está em contestar o uso da ferramenta — que cumpre papel relevante de prevenção —, mas em refletir sobre o peso que ela deve ter em situações nas quais há evidências consistentes de segurança e diferenciação já comprovadas.
Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor
Mais do que um conflito entre tecnologia e prática, trata-se de buscar harmonia entre ambos. O avanço de sistemas automatizados pode aprimorar a eficiência regulatória, desde que acompanhado de avaliações que considerem o histórico de uso, o contexto de marca registrada e a realidade observada no mercado. O equilíbrio entre esses elementos é essencial para assegurar tanto a proteção ao paciente quanto a previsibilidade e a coerência nas decisões administrativas.
O caso que revela o problema
Imagine o seguinte cenário: uma empresa solicita o registro de um medicamento com um nome comercial que já foi anteriormente registrado e comercializado no Brasil. Durante anos, esse nome conviveu com outros similares no mercado, sem qualquer histórico de eventos adversos, confusão na dispensação, falhas de prescrição ou relatos de risco à saúde pública, tendo posteriormente seu registro cancelado por solicitação do titular.
Entretanto, posteriormente, ao submeter novamente esse nome à Anvisa, a ferramenta POCA aponta um índice de semelhança superior a 70% em relação a outras marcas que, também elas, já se encontravam no mercado anteriormente. O sistema aciona, automaticamente, uma exigência técnica para alteração do nome, sem considerar o histórico regulatório e comercial prévio.
Esse tipo de indeferimento técnico ignora a jurisprudência da própria realidade. A convivência anterior não é uma hipótese futura de risco, mas uma evidência concreta de que o mercado — médicos, farmacêuticos e consumidores — soube diferenciar os produtos. Em casos assim, o regulador deveria adotar uma postura mais analítica e menos automatizada.
O que diz a RDC nº 59/2014 e a Orientação de Serviço Nº 43/2017
A Resolução RDC nº 59/2014, que disciplina a formação de nomes comerciais de medicamentos, exige que os nomes guardem “suficiente distinção gráfica e fonética” entre si. A própria RDC admite, em seu artigo 15, que a recusa de um nome pode ocorrer “mediante motivação de risco ao consumidor”. Ora, quando não há histórico de risco — e, ao contrário, há evidência de convivência pacífica no mercado — não há como justificar, sob o prisma da proporcionalidade, uma decisão que impeça a reutilização do nome anteriormente aprovado.
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A Orientação de Serviço Nº 43 indica que, identificada a “colidência gráfica e fonética”, deve-se “avaliar o risco quanto a possibilidade de erro ou confusão da prescrição, na dispensação, na administração e/ou uso do medicamento”, o que reforça que o Sistema POCA deve ser considerado um critério inicial e relativo de avaliação de colidência.
A lógica reversa e a insegurança jurídica
O indeferimento de um nome que já foi aceito, registrado e utilizado no mercado apenas porque um algoritmo apontou semelhança superior a um patamar abstrato (como 70%) cria um cenário de insegurança jurídica. A autoridade reguladora passa a atuar com lógica reversa: desconsidera a experiência prática do mercado e se ancora exclusivamente numa simulação fonética.
A consequência disso é clara: a empresa que já havia investido na construção de uma identidade mercadológica passa a ser penalizada sem fundamento concreto, e o consumidor — que já reconhecia o produto por aquele nome — é privado de uma referência familiar, em nome de um risco teórico inexistente.
Marcas registradas: patrimônio empresarial ameaçado por instabilidade regulatória
Em muitos casos, os nomes propostos pelas empresas são protegidos por marcas devidamente registradas e vigentes no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Trata-se de um ativo estratégico, construído com esforço publicitário, investimento e reconhecimento de mercado. A marca registrada para a classe específica de medicamentos representa, juridicamente, o direito exclusivo de uso comercial naquele segmento.
Se a Anvisa, sem qualquer fato novo relevante, no momento de relançamento de um produto altera seu entendimento anterior e passa a indeferir nomes já utilizados ou previamente aprovados, compromete gravemente o valor econômico dessas marcas. Essa mudança inesperada de critério, dissociada da realidade regulatória e comercial, esvazia o conteúdo prático do direito de marca, reduzindo sua utilidade e impedindo sua exploração no único segmento para o qual foi concebida.
Soluções possíveis: da via administrativa à judicialização
Em situações como essa, recomenda-se que a empresa, ainda na via administrativa, apresente manifestação técnica demonstrando a ausência de risco sanitário e a convivência anterior. A argumentação deve destacar que a POCA é meramente indicativa e não substitui a análise regulatória completa exigida pela própria RDC nº 59/2014.
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Se a negativa persistir, a judicialização do tema é juridicamente viável e pode ser fundada nos princípios da razoabilidade, da segurança jurídica e da livre iniciativa. Não são raros os precedentes judiciais que relativizam exigências meramente formais da Administração quando ausente risco concreto ao interesse público.
Conclusão
Se um nome comercial já conviveu no mercado com outros semelhantes, sem histórico de risco ou confusão, impedir sua reapresentação apenas com base no índice POCA é desproporcional. Pior: é uma forma de desvalorização de ativos empresariais legítimos, como marcas devidamente registradas e ainda vigentes.
É urgente retomar o equilíbrio. A segurança do paciente importa — mas também importa a segurança jurídica de quem investe no desenvolvimento, registro e comercialização de medicamentos no Brasil. A experiência prática de mercado, quando demonstrada de forma robusta, deve prevalecer. Porque a realidade, quando bem documentada, é o melhor antídoto contra o formalismo cego.