A decisão recente do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 1.426.271, sob o Tema 1.266 da repercussão geral, é mais do que um desfecho para a controvérsia em torno do ICMS-Difal. É uma síntese do modo como o Supremo vem conciliando o ideal constitucional com a urgência fiscal dos Estados, ora em nome da segurança jurídica, ora em nome da governabilidade. A linha entre uma e outra, entretanto, parece cada vez mais tênue.
A controvérsia é antiga. Desde a Emenda Constitucional 87 de 2015, buscou-se reequilibrar a repartição do ICMS nas operações interestaduais destinadas a consumidor final, mas o vácuo normativo quanto à operacionalização do diferencial de alíquotas gerou um mosaico de legislações estaduais e, por consequência, um cenário de litígio permanente. A Lei Complementar 190 de 2022 veio, enfim, uniformizar a matéria. O problema foi o tempo. Publicada em 4 de janeiro, a lei passou a ser aplicada por diversos estados de forma imediata, em afronta ao princípio da anterioridade nonagesimal previsto no artigo 150, III, “c”, da Constituição. O resultado foi previsível: judicialização em massa, insegurança para empresas e mais um embate federativo.
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No julgamento da ADI 7066, o STF fixou a necessidade de observância da anterioridade nonagesimal, estabelecendo que a LC 190 somente teria eficácia a partir de 5 de maio de 2022. Agora, ao julgar o recurso extraordinário interposto por uma empresa cearense, a Corte reafirmou esse entendimento, mas acrescentou um elemento decisivo: modulou os efeitos da decisão para isentar do pagamento retroativo as empresas que ajuizaram ações até 29 de novembro de 2023 e que não haviam recolhido o imposto em 2022.
À primeira vista, a decisão equilibra rigor técnico e razoabilidade prática. Ao reconhecer a validade da LC 190 e, ao mesmo tempo, preservar situações pretéritas em que o contribuinte confiou em decisões judiciais, o Supremo busca mitigar o impacto econômico de sua própria jurisprudência. Mas o remédio escolhido revela um sintoma mais profundo: a normalização da modulação de efeitos como instrumento de governança tributária.
A modulação, concebida originalmente como exceção para evitar o caos jurídico, tornou-se o mecanismo preferencial para conciliar a Constituição com a realidade fiscal. Sob o pretexto da segurança jurídica, o que se observa é a criação de uma espécie de “segurança seletiva”, que distingue contribuintes não pela norma, mas pela oportunidade do litígio. Quem foi ao Judiciário é beneficiado. Quem confiou na validade da lei, paga o preço. Trata-se de uma inversão perversa da lógica constitucional: a desconfiança passa a ser premiada.
Não se ignora o contexto. O sistema tributário brasileiro é anacrônico, conflituoso e desproporcionalmente dependente do ICMS. Nenhum Estado poderia simplesmente abrir mão do diferencial de alíquotas sem comprometer sua arrecadação. Mas admitir que esse argumento fiscal justifique a flexibilização das garantias constitucionais é uma escolha perigosa. Quando o tempo de vigência de uma lei é moldado conforme as conveniências do caso concreto, a anterioridade deixa de ser princípio e passa a ser variável de cálculo.
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A decisão do STF é juridicamente coerente, mas politicamente sintomática. Ao mesmo tempo em que reafirma a constitucionalidade da LC 190, reforça a ideia de que as regras do jogo podem ser reescritas a posteriori, desde que com modulação. O que se vende como segurança é, na verdade, uma gestão calibrada da incerteza.
No fundo, o julgamento revela uma crise mais ampla: a da previsibilidade do direito tributário brasileiro. Não se trata de discutir se o STF decidiu certo ou errado, mas de constatar que o próprio sistema constitucional parece ter se habituado a operar na fronteira entre o provisório e o permanente. A cada nova decisão modulada, a cada princípio reinterpretado em nome do equilíbrio federativo, a promessa de estabilidade se afasta um pouco mais.
Em última análise, o julgamento do STF sobre o Difal não é apenas um capítulo técnico na história do federalismo fiscal, mas um retrato de como o tempo se tornou o novo parâmetro da justiça tributária no Brasil. A Corte reafirma princípios, mas simultaneamente os relativiza, convertendo a segurança jurídica em um conceito de conveniência. O contribuinte, que deveria ser protegido contra a incerteza normativa, torna-se refém da oscilação interpretativa e da cronologia das decisões.
A modulação de efeitos, que nasceu como exceção prudencial, vem se transformando em regra de governo, usada não para garantir estabilidade, mas para administrar o impacto político de julgamentos constitucionais. E quando a previsibilidade depende da oportunidade de litigar, o sistema deixa de premiar a boa-fé e passa a recompensar a desconfiança.
O STF saiu ascendente em autoridade institucional, mas dúbio em coerência dogmática. A decisão é juridicamente defensável, mas revela normalização da excepcionalidade. No fim, a maior lição do caso Difal talvez seja esta: a segurança jurídica continua sendo proclamada como princípio, mas persiste como privilégio.
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Referências
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, especialmente os arts. 146, III, “a”, e 150, III, “b” e “c”.
Emenda Constitucional nº 87, de 16 de abril de 2015. Altera a sistemática de arrecadação do ICMS nas operações interestaduais destinadas a consumidor final.
Lei Complementar nº 190, de 4 de janeiro de 2022. Dispõe sobre a cobrança do diferencial de alíquotas do ICMS nas operações e prestações destinadas a consumidor final não contribuinte do imposto.
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7066. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Julgamento concluído em 29.11.2023.
Recurso Extraordinário (RE) nº 1.426.271/CE (Tema 1.266 da Repercussão Geral). Relator: Min. Alexandre de Moraes. Julgamento virtual concluído em 17.10.2025.