Em 2024, a indústria da música global foi impactada com o ajuizamento de duas grandes ações judiciais, sem precedentes do mesmo porte, propostas pela Associação da Indústria Fonográfica dos Estados Unidos, representando players relevantes do mercado, como, Universal Music (UMG Records), Sony Music e Warner Records. No polo passivo de tais processos, encontram-se startups que geram músicas utilizando ferramentas de inteligência artificial generativa: a Suno, Inc. e a Udio. As gravadoras afirmam que há indícios concretos de que a IA utilizada por tais empresas foi treinada com músicas cujos direitos autorais pertencem a elas, sem a sua autorização. Por essa razão, pleiteiam indenização pelo uso não autorizado das obras, bem como a interrupção das atividades das referidas startups. Até o momento, não foi proferida decisão de mérito no âmbito de tais processos.
Importante destacar que, nos Estados Unidos, as principais regras sobre direitos autorais são o Copyright Act, de 1976 – que foi a base normativa dos processos acima mencionados – e o Digital Millennium Copyright Act, de 1998. Além disso, embora as regras de proteção dos direitos autorais nos Estados Unidos tenham diversas semelhanças com as normas vigentes no Brasil, o conceito norte-americano de “fair use”, previsto no Copyright Act, é abrangente, aberto e flexível, permitindo que as criações protegidas por direitos autorais sejam utilizadas sem autorização em situações consideradas “razoáveis”, incluindo, críticas, comentários, reportagens, ensino, bolsas de estudo e pesquisas, fundamentando-se na liberdade de expressão.
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Ressalta-se que, apesar de o Digital Millennium Copyright Act ter como objetivo atualizar o regime jurídico dos direitos autorais para a era digital, ele ainda não se mostrou capaz de acompanhar, em tempo real, a rápida evolução das novas tecnologias, especialmente da inteligência artificial. Com o intuito de endereçar esse tema – que ainda gera mais dúvidas do que respostas – o U.S. Copyright Office publicou, entre 2024 e 2025, um estudo que trata de questões como réplicas digitais, proteção de obras geradas por IA e o uso de obras protegidas no âmbito do treinamento de IA generativa, com base em diversos comentários recebidos pela agência em uma consulta pública realizada em 2023.
No Brasil, a Lei nº 9.610, de 1998 (Lei dos Direitos Autorais – LDA), rege a proteção de direitos autorais. O art. 7º do diploma elenca as obras intelectuais protegidas, incluindo as composições musicais, tenham elas letra ou não (inciso V). Assim como nos Estados Unidos, a proteção é automática e o registro é opcional, servindo como prova em disputas judiciais. Entretanto, diferentemente do que ocorre no Copyright Act, a LDA não contempla o instituto do “fair use” e traz, em seu art. 46, um rol taxativo das hipóteses em que as obras protegidas por direitos autorais podem ser utilizadas sem autorização do autor ou de quem as administra.
A LDA, assim como o Copyright Act, não possui uma previsão específica sobre a proteção de direitos autorais diante das novas tecnologias. O diploma, por exemplo, não deixa claro qual é o grau de interferência humana necessário para que as obras recebam tal proteção. De acordo com o supracitado art. 7º e com os arts. 11 a 17 da lei, devem estar presentes os requisitos da originalidade, da criatividade e das criações do espírito para que uma obra seja considerada autoral. Ademais, a LDA define como autor somente a “pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica”.
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Nesse sentido, os arts. 62 e 63 do Projeto de Lei nº 2.338, de 2023, que pretende ser o marco regulatório da Inteligência Artificial no Brasil, tem como objetivo endereçar a lacuna sobre esse tema. O art. 62 dispõe que os desenvolvedores e aplicadores que utilizarem conteúdo protegido por direitos autorais em seus sistemas de IA devem publicar, em site de fácil acesso, um sumário das obras utilizadas, respeitando segredos comerciais e industriais. Por sua vez, o art. 63 do PL tem conceito semelhante ao do dispositivo de limitações aos direitos autorais da LDA, já mencionado. Este artigo prevê que organizações e instituições científicas e de pesquisa, museus, arquivos públicos, bibliotecas e instituições educacionais podem usar conteúdo protegido por direitos autorais sem autorização, desde que não haja finalidade comercial.
Essas exigências ainda não estão em vigor, considerando que o PL nº 2.338/23 segue sob análise da Comissão Especial na Câmara dos Deputados. Além disso, a redação dos arts. 62 e 63 é objeto de discussões entre players relevantes do mercado. Na indústria musical, a União Brasileira de Compositores (UBC) e a Pro-Música Brasil, em conjunto com outras associações da cultura e da comunicação, apresentaram uma carta aberta em defesa dos dispositivos propostos.
O fato é que, embora em proporções mais discretas do que na experiência norte-americana, a judicialização de conflitos relacionados à autoria de músicas e àquelas elaboradas com IA também já teve início no Brasil. Em julho de 2025, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJSC) analisou um agravo de instrumento impetrado pela Splitz Park contra decisão que indeferiu tutela provisória de urgência apresentada pela empresa para afastar o pagamento da contribuição ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) em razão da reprodução de músicas exclusivamente geradas por IA em parque de diversões por ela gerenciado.
O TJSC negou o recurso, fazendo constar no acórdão que, em seu entendimento: (i) “a alegação de que as músicas são geradas por IA não afasta, por si só, a presunção de legalidade da atuação do Ecad”; (ii) “a ausência de autor humano identificável não exclui, por si só, a incidência de direitos autorais” e (iii) “laudo técnico apresentado pela parte agravada identificou semelhança significativa entre obra gerada por IA e composição preexistente”. Ainda não há, porém, decisão final, considerando que o processo encontra-se em fase de cognição.
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Não há dúvidas de que a rápida evolução da inteligência artificial generativa tem colocado em evidência lacunas na legislação de direitos autorais, tanto no Brasil quanto no exterior. Os casos recentes mencionados acima demonstram que ainda não há consenso sobre como lidar com obras criadas por IA, especialmente quanto à necessidade de intervenção humana, nem sobre o uso de conteúdos protegidos no treinamento desses sistemas. Além disso, o debate regulatório segue em aberto, com propostas como o PL 2.338/2023 no Brasil e estudos em andamento nos Estados Unidos.
O desafio, portanto, está em encontrar um equilíbrio entre a proteção dos direitos autorais e o incentivo à inovação. E o avanço dessa discussão será fundamental para garantir segurança jurídica e estimular o desenvolvimento da IA na indústria do Entretenimento Musical.
Referências
UMG Recordings, Inc. v. Suno, Inc., 1:24-cv-11611 – CourtListener.com. Disponível em: https://www.courtlistener.com/docket/68878608/umg-recordings-inc-v-suno-inc/.
PANDELÓ, Natália. ECAD pode cobrar por execução pública de música feita com IA, diz decisão liminar. UBC. Disponível em: https://www.ubc.org.br/publicacoes/noticia/23490/ecad-pode-cobrar-por-execucao-publica-de-musica-feita-com-ia-diz-decisao-liminar.
VILLAR, Marcela. TJSC permite cobrar direitos autorais de IA. Valor Econômico. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2025/08/29/tjsc-permite-cobrar-direitos-autorais-de-ia.ghtml.
Agravo de Instrumento nº 5032376-37.2025.8.24.0000/SC. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Rel. des. João Marcos Buch. Julgado em 31.7.2025. Disponível em: https://sipla.ip.mpg.de/fileadmin/Files/Files/ECAD_music_AI.pdf.
What is “fair use” and how does it apply to copyright law? Harvard University. Disponível em: https://dmca.harvard.edu/faq/what-%E2%80%9Cfair-use%E2%80%9D-and-how-does-it-apply-copyright-law.
LEE, Maggie. Tools or Masterminds? — The Copyright Office on AI Authorship. The Columbia Journal of Law and the Arts Journal. Disponível em: https://journals.library.columbia.edu/index.php/lawandarts/announcement/view/650.
ZIRPOLI, Christopher T. Generative Artificial Intelligence and Copyright Law. Congress.gov. Disponível em: https://www.congress.gov/crs-product/LSB10922.
Ecad. Ecad, associações da gestão coletiva da música e entidades da cultura entregam carta à Câmara pedindo proteção de direitos autorais no PL da Inteligência Artificial. Disponível em: https://www4.ecad.org.br/noticias/ecad-associacoes-da-gestao-coletiva-da-musica-e-entidades-da-cultura-entregam-carta-a-camara-pedindo-protecao-de-direitos-autorais-no-pl-da-inteligencia-artificial/.