O recente julgamento do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP)[1], no caso SpaceX vs. Starlink.com.br, reacende o debate sobre os limites do princípio do “first come, first served”, que orienta o registro de nomes de domínio, diante das práticas de cybersquatting, que exploram indevidamente nomes de terceiros, cada vez mais comuns no ambiente digital.
A disputa teve início com uma decisão administrativa do NIC.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR), no âmbito de um procedimento interno, que determinou a transferência do domínio Starlink.com.br para a SpaceX, ao reconhecer indícios de má-fé no registro mantido por uma empresa brasileira.
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Inconformado, o titular do domínio ajuizou ação para anular a decisão administrativa e declarar a inexistência de má-fé, sendo que o juízo de primeiro grau acolheu o pedido, entendendo que o registro seguia a regra de prioridade (first come, first served) e que não havia provas de aproveitamento indevido da marca.
No entanto, o Tribunal de Justiça de São Paulo, por meio da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, reformou parcialmente a sentença, restabelecendo a decisão administrativa e reconhecendo que a conduta evidenciava má-fé, contudo, afastou o pedido de indenização por concorrência desleal formulado pela SpaceX em sede de reconvenção.
A controvérsia envolveu o domínio Starlink.com.br, registrado em 2016 por uma empresa nacional antes de a SpaceX requerer o registro da marca “Starlink” junto ao INPI, que ocorreu em 2018.
A princípio, e foi exatamente o que se decidiu em primeiro grau, pareceria legítima a titularidade, pois a Resolução n. 008/2008 do Comitê Gestor da Internet (CGI.br) estabelece que o domínio é concedido a quem primeiro o requer[2], aplicando o first come, first served.
Todavia, o Tribunal de Justiça de São Paulo, alterando a decisão de primeiro grau, restabeleceu a decisão administrativa do NIC.br que determinara a transferência do endereço à SpaceX, reconhecendo indícios claros de má-fé.
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Isso porque, como destacado pelo TJSP, o registro ocorreu após o lançamento internacional do projeto Starlink, sendo que os titulares do registro atuavam no mesmo ramo (telecomunicações), não podendo alegar desconhecimento do projeto internacional, e o domínio permaneceu inativo por anos, sendo posteriormente oferecido para a SpaceX por R$ 50 milhões.
A decisão é emblemática ao afirmar que o princípio da prioridade não legitima condutas oportunistas, o Tribunal delineou um importante freio ético à apropriação predatória de signos distintivos alheios, na medida em que a corrida pelo domínio não pode ser instrumento de enriquecimento sem causa, desvio de clientela ou confusão no mercado.
Assim como a marca, o domínio integra o patrimônio intangível do empresário, funcionando como extensão digital do estabelecimento empresarial, um ativo que comunica reputação, origem e confiabilidade.
No plano jurídico, a decisão reforça a necessidade de interpretar o regime dos domínios em harmonia com a Lei de Propriedade Industrial (LPI), especialmente seus artigos 124, V[3] e 129[4], que asseguram ao titular o uso exclusivo da marca e vedam a reprodução de sinais distintivos capazes de induzir o consumidor em erro, de modo que a proteção conferida à marca não se limita ao registro formal: decorre também do uso e da notoriedade que o sinal adquire no mercado.
O Tribunal recupera ainda o entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual, embora vigore no Brasil o first come, first served, o registro pode ser contestado se demonstrada a má-fé, caracterizada por condutas antiéticas voltadas ao aproveitamento do prestígio alheio.
Como já decidido no REsp 658.789/RS[5], a “legitimidade do registro do nome do domínio obtido pelo primeiro requerente pode ser contestada pelo titular de signo distintivo similar ou idêntico anteriormente registrado – seja nome empresarial, seja marca. […] Tal pleito, contudo, não pode prescindir da demonstração de má-fé, a ser aferida caso a caso, podendo, se configurada, ensejar inclusive o cancelamento ou a transferência do nome de domínio e a responsabilidade por eventuais prejuízos”.
No mesmo sentido também decidido no REsp 1.804.035/DF[6], “Também constitui entendimento firmado nesta Corte que […] é possível que eventual prejudicado, detentor de registro de sinal distintivo idêntico ou semelhante, possa vir a contestar o nome de domínio conflitante. A insurgência, contudo, somente deve ser acolhida na hipótese de ficar caracterizada a má-fé, elemento que […], em situações como a dos autos, caracteriza-se pela prática de atos antiéticos, oportunistas, direcionados a causar confusão nos consumidores, desvio de clientela ou aproveitamento parasitário”.
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No caso concreto, a combinação de fatores como a anterioridade da marca no exterior, a inatividade prolongada do domínio registrado no Brasil e o valor exorbitante pedido pela cessão, configurou típico exemplo de cybersquatting, prática que ameaça a concorrência leal e desvirtua a função identificadora dos sinais distintivos ao explorar indevidamente nomes de terceiros, cada vez mais comuns no ambiente digital.
Sob a ótica empresarial, o jugado reitera entendimento importante. A disputa por nomes de domínio tornou-se parte estratégica da gestão de ativos imateriais. Marcas, patentes e endereços eletrônicos compõem hoje um ecossistema de valor em que a identidade digital se confunde com a própria presença de mercado.
Para empresas multinacionais, a omissão no registro preventivo de domínios pode gerar riscos reputacionais e litígios onerosos, já para pequenos empreendedores, o caso evidencia que a atuação de boa-fé e o respeito à função econômica da marca são imperativos que transcendem a mera formalidade técnica.
Em última análise, a decisão do TJSP reafirma um princípio civilizatório: no ambiente digital, o direito à exclusividade não é privilégio, mas consequência do uso legítimo e ético, de modo que o first come, first served garante segurança jurídica, mas não deve blindar comportamentos especulativos.
Verifica-se, assim, que o avanço da economia digital exige um novo equilíbrio entre liberdade de registro e responsabilidade concorrencial o que, felizmente, começa a ser delineado pelos tribunais brasileiros.
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[1] https://esaj.tjsp.jus.br/pastadigital/abrirDocumentoEdt.do?origemDocumento=M&nuProcesso=1018648-08.2023.8.26.0001&cdProcesso=RI008SYV80000&cdForo=990&tpOrigem=2&flOrigem=S&nmAlias=SG5TJ&instanciaProcesso=SG&cdServico=190201&ticket=8Ka2vqgp6iWJd69jmysyiTbDmGLf%2FMwTyeWqRiDkbRjeBxdKdyk%2FYfy%2FDhiHd%2BmJfz1HtHaDxQk8Md412O%2FQGeOiCmnwD082Bhwt7VI69S2iUEcHmbHPc5dZDXQxN9dhSSa%2FaaSwdKVZgUo3VY5mVJXav8I0xIIxnkJKU8XBAhT1vZtkMsMoTCfZC2FQSIsd0raz0XiJ8ObWrkC7Di%2Bz4LWf0lgJ5KvdiRmS8I88YzUgGjXBWOcKra1PGlypZB9oTh9iQscDPddDS2TXZNz5czLm72Pep3dAK0DgAz9rGVLNHMpEZaJHRiQYETkAbmTR6CDVwtspJ%2FFaedoWNQ46OXGwWVTcldtlve4B5gKCXswJhUZz%2Bj8kgsEPnFz6bKL55dAiPSM58AXwlUyE0xZe3FVkeAUOBBr8VYpMpWbNYaGFBEysI4U0UZOmY13gqxSV
[2] https://www.cgi.br/resolucoes/documento/2008/008/
[3] Art. 124. Não são registráveis como marca: […]
V – reprodução ou imitação de elemento característico ou diferenciador de título de estabelecimento ou nome de empresa de terceiros, suscetível de causar confusão ou associação com estes sinais distintivos;
[4] Art. 129. A propriedade da marca adquire-se pelo registro validamente expedido, conforme as disposições desta Lei, sendo assegurado ao titular seu uso exclusivo em todo o território nacional, observado quanto às marcas coletivas e de certificação o disposto nos arts. 147 e 148.
[5] https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1260882&num_registro=200400615278&data=20130912&formato=PDF
[6] https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1844595&num_registro=201900757358&data=20190628&formato=PDF