A regulação do trabalho infantil artístico nas redes sociais

O tema da adultização, que ganhou repercussão nacional após a publicação do afamado vídeo do influenciador Felca, remete a uma discussão central na proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital: o trabalho infantil artístico. Embora a atividade de influenciador digital seja reconhecida como profissão pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), muitas crianças e adolescentes atuam nos meios digitais sem qualquer proteção, ficando expostos a riscos que incluem a sua erotização precoce e exploração comercial.

A questão, no entanto, não está desprovida de regulação no ordenamento jurídico brasileiro. As disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sobretudo seu art. 149, inciso II, e da Convenção nº 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), com destaque ao seu art. 8º, já estabelecem proteções para as crianças e os adolescentes que participam de representações artísticas ou espetáculos públicos e seus ensaios.

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Em conjunto, esses diplomas reconhecem a possibilidade de participação dessas pessoas em atividades dessa natureza, em homenagem à liberdade artística constitucionalmente assegurada, mas determinam que tais atividades sejam precedidas de alvará judicial que as discipline e resguarde os direitos das crianças e dos adolescentes envolvidos. Nesse sentido, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) vem tratando do tema desde 2014, por meio da Recomendação nº 24, que estabeleceu parâmetros iniciais relevantes para a proteção do trabalho infantil artístico em casos concretos.

Em 2023, buscando atualizar essas diretrizes, o CNMP publicou a Recomendação nº 98, que revogou a norma anterior e trouxe importantes elementos para o debate. Entre os principais pontos abordados, destacam-se a exigência de concordância prévia e imprescindível da criança ou do adolescente para a realização da atividade artística; a vedação do trabalho quando houver risco de prejuízo ao seu desenvolvimento biopsicossocial; e a fixação de limites máximos de jornada e carga horária semanal, com intervalos de descanso e alimentação compatíveis com o seu estágio peculiar de desenvolvimento. Ressalte-se, ainda, que a Recomendação também prevê que, nas atividades exercidas de forma continuada, o Ministério Público deve propor a renovação periódica da autorização e, no caso de crianças, condicionar a nova manifestação à apresentação de parecer emitido por médico pediatra.

Toda essa dinâmica de proteção, já amplamente reconhecida em relação às atividades desempenhadas nos meios de comunicação tradicionais, deve ser estendida às redes sociais, que hoje desempenham papel análogo ao dos veículos midiáticos convencionais. A própria Recomendação nº 98 incorporou um olhar específico sobre o papel das plataformas digitais, ao dispor que, nas manifestações artísticas realizadas em ambiente digital, o Ministério Público deve observar possíveis omissões das empresas provedoras de serviços de internet no cumprimento de seus deveres de cuidado, adotando, quando necessário, medidas extrajudiciais ou judiciais para a imediata remoção de conteúdos que violem direitos de crianças e adolescentes. O texto também prevê a responsabilização rigorosa dos agentes econômicos que descumprirem tais deveres ou mantiverem o conteúdo disponível mesmo após terem sido formalmente notificados sobre a atuação ministerial.

Desse modo, não há justificativa para que as plataformas digitais, que viabilizam, lucram e, não raro, incentivam a atuação de influenciadores crianças e adolescentes, estejam isentas de responsabilidade quanto ao cumprimento da legislação protetiva. O princípio da responsabilidade compartilhada, previsto no art. 227 da Constituição Federal, bem como as normas infraconstitucionais de proteção à infância vigentes, impõem que essas empresas atuem de forma a garantir a proteção integral desse público, sobretudo quando lucram com as imagens, atividades on-line, dados pessoais e metadados dessas pessoas. Por isso, devem atuar proativamente para coibir situações de violação de seus direitos que acontecem nos ambientes digitais por elas geridos.

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Partindo de tal premissa, o Instituto Alana, junto com o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), publicou a coleção “Comentário Geral nº 25 na Prática: Orientações para a Defesa das Crianças e dos Adolescentes no Ambiente Digital”, mais especificamente a cartilha “Trabalho Infantil Artístico nas Redes Sociais”, que apresenta não apenas os riscos envolvidos nessa dinâmica de exposição online, como também as possíveis linhas de atução do Ministério Público para que os direitos e interesses das crianças e adolescentes envolvidos sejam protegidos.

É com base nesses entendimentos que a jurisprudência tem avançado, recentemente, na fixação de precedentes importantes, no sentido de reconhecer a responsabilidade de grandes plataformas digitais pela proteção de crianças e adolescentes que nelas atuam como influenciadores. No processo nº 1001053-84.2024.5.02.0031, ajuizado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) contra a ByteDance (empresa proprietária do TikTok), a 31ª Vara do Trabalho de São Paulo reconheceu o dever da plataforma de “ABSTER-SE de admitir ou tolerar a realização de trabalho infantil artísticos nos vídeos veiculados em sua plataforma, salvo se houver o competente alvará judicial, sob pena de multa de R$ 10.000,00, por infração, a ser revertida para o Fundo da Infância e Adolescência (FIA)”. A decisão foi confirmada, em junho de 2025, pela 15ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, cujo acórdão foi impugnado por embargos de declaração e recurso de revista – este segundo ainda pendente de julgamento.

De modo semelhante, no processo nº 1001427-41.2025.5.02.0007, movido por litisconsórcio entre o MPT e o Ministério Público de São Paulo, a Facebook Brasil, empresa detentora do Instagram, foi objeto de decisão liminar que o obriga a adotar medidas análogas às impostas ao TikTok. O processo ainda tramita em primeira instância, aguardando audiência una. De todo modo, o entendimento esposado na decisão liminar sinaliza, também, a necessidade de conformidade das redes sociais com a legislação pertinente ao trabalho infantil artístico.

No âmbito da Justiça Federal, vale destacar a decisão recentemente proferida no âmbito do processo nº 0054856-33.2016.4.01.3800, que determinou que a Google implementasse avisos na página inicial do YouTube sobre a ilegalidade da publicidade infantil veiculada por influenciadores mirins a outras crianças, além de adotar mecanismos de denúncia para violações relacionadas ao tema. Ainda que não trate, especificamente, da responsabilidade da plataforma pela fiscalização dos alvarás judiciais que amparam as atividades de influenciadores crianças e adolescentes, a decisão reconhece a responsabilidade compartilhada pela proteção dessas pessoas e coíbe a sua hiperexposição, incentivada pelo mercado publicitário quando este firma parcerias onerosas com elas para a divulgação de produtos e serviços.  Ainda, a decisão reconhece a necessidade de alinhamento das políticas do YouTube ao Código de Defesa do Consumidor, à Resolução nº 163 do Conanda e às demais normas que incidem sobre a publicidade infantil, as quais já reconhecem a abusividade desse tipo de publicidade.

Esse conjunto de decisões demonstra que a proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital pode ser desde já promovida com base na aplicação e interpretação da legislação vigente à luz das dinâmicas próprias das redes sociais e do ambiente digital como um todo. Em que pese a imensa relevância de marcos normativos específicos sobre o tema, como é o caso do recém-sancionado ECA Digital (Lei n° 15.211/25), é importante que as regras e princípios de proteção à infância, ao consumidor e, inclusive, ao trabalho, já há muito consagrados na legislação brasileira, sejam aplicados a este ambiente em adição às inovações legislativas que têm sido conquistadas, de modo a fortalecer a proteção integral de crianças e adolescentes e garantir a harmonia e complementaridade das normas vigentes no ordenamento jurídico brasileiro.

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Há, portanto, muito que se comemorar com relação aos avanços na jurisprudência sobre a questão do trabalho infantil artístico nas redes sociais, o que não exclui, contudo, a necessidade de que esses debates sigam sendo pautados no Sistema de Justiça, no Poder Legislativo e nos órgãos competentes do Poder Executivo, de modo a fazer frente às constantes inovações nas dinâmicas das redes sociais e a assegurar os direitos fundamentais dessa parcela juridicamente vulnerável da população brasileira.

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