A ausência de planejamento e de políticas públicas que assegurassem ao país desenvolvimento econômico e inclusão social, em decorrência dos problemas estruturais que tornaram as instituições governamentais incapazes de formular programas eficazes de médio e longo prazo numa sociedade tão desigual em termos sociais e regionais, só podia dar em expansão da anomia na sociedade brasileira.
Essa crescente anomia tornou-se cada vez mais evidente com a repetição de acontecimentos geradores de descontrole da ordem e da segurança, como vem ocorrendo com o narcotráfico. O resultado só poderia culminar na multiplicação de segmentos mais marginalizados da sociedade e, por tabela, em um aumento em proporção geométrica da violência urbana, de sucessivas afrontas à ordem estabelecida e do desprezo pelos mais elementares direitos humanos.
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Isso foi evidenciado em outubro de 1992, quando a Polícia Militar paulista foi chamada para debelar uma rebelião num dos pavilhões da Casa de Detenção, no complexo penal do Carandiru, e que resultou no massacre de 111 detentos. Pouco mais de três décadas depois, desta vez no Rio de Janeiro, a tragédia foi ainda maior, com a morte brutal de 117 pessoas envolvidas com tráfico de drogas e de 4 policiais.
Ao justificar a ruptura das normas relativas aos direitos fundamentais e à segurança pública previstas pela Constituição, o governador fluminense deu a dimensão de como as relações entre mando e obediência e entre direito e poder estão se descompondo gradativamente entre nós. Classificando os policiais como “guerreiros” e os assassinados como bandidos, o governador afirmou que o poder público defendeu a população. Já seus secretários disseram que, do ponto de vista militar, “o cerco e o aniquilamento” dos 117 traficantes mortos foi uma “operação bem sucedida”. Como se não bastasse, tanto o governador quanto seus secretários classificaram os traficantes mortos como “narcoterroristas”, que nada mais é do que uma narrativa que lhes permite deslocar a discussão do campo do direito constitucional e do direito penal para o âmbito da segurança nacional.
Como afirmaram vários juristas, sociólogos e cientistas políticos no dia seguinte ao da tragédia, esse é um argumento que dissolve a fronteira entre direito e exceção. Por um lado, ele também justifica a militarização da segurança pública. Por outro lado, esvazia os mecanismos de controle jurídico e atuação do Ministério Público e da Justiça. Não foi justamente essa diluição conceitual a que recorreram os militares golpistas de 1964, a ponto de inclui-lo expressamente no texto do Ato Institucional n° 5, justificando a substituição da democracia por uma ditadura fardada?
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Falas como as das autoridades fluminenses do setor policial de segurança são perigosas, do ponto de vista político e disruptivas no plano institucional, pois abrem caminho para que membros do poder público passem a acreditar que têm a discricionariedade para decidir quem é “cidadão de bem” e quem são os “maus cidadãos”. Graças a essa suposta prerrogativa, eles se sentem livres para decidir quem deve viver e quem tem de ir para abaixo da terra.
Argumentos como esses implicam a lógica da chamada “guerra interna” – algo que guarda enorme semelhança com a lógica dos nazistas nas décadas de 1920 e 1930. Ou seja, quem não é amigo é inimigo. Essa discussão foi travada com grande intensidade na Alemanha, quando um dos teóricos do nazismo, o controverso jurista Carl Schmitt, passou a defender a tese de que a distinção entre amigo e inimigo está na essência da política e a afirmar que a guerra é o confronto guerra é condição limite – mas fundamental – para a definição do político. Adepto da concentração do poder pelo Executivo e estudioso das tensões entre normalidade e exceção, ao tratar da relação entre amigo e inimigo Schmitt sobrepunha o poder ao direito bem como a decisão política sobre a norma jurídica. Desse modo, reduzia a política ao confronto.
Dito de outro modo: ao afirmar que em determinados momentos o soberano deveria ficar acima do Legislativo, Schmitt defendia a conversão de medidas de exceção em regra – ou seja, valorizava o exercício do poder pela força. Contudo, em que medida a excepcionalidade para um determinado período de tempo – a exemplo do que ocorreu no tempo da Covid-19 – não pode acabar se convertendo em um novo normal, amaçando o constitucionalismo democrático, como se viu com Viktor Órban, na Hungria, e Jair Bolsonaro, no Brasil? Em que medida o desprezo pelos direitos fundamentais – entre eles, o direito ao devido processo legal que foi negado aos 117 mortos pela polícia carioca – não abriu um precedente que pode levar a um retrocesso do Estado de Direito conquistado quando a sociedade brasileira finalmente conseguiu se opor se opor ao regime de exceção dos militares?
Se cada governador e seus secretários de Segurança Pública e comandantes da Polícia Militar passarem a partir de agora a invocar argumentos semelhantes aos das autoridades fluminenses, no sentido de que estão enfrentando o narcotráfico com base na justificativa de que narcotraficantes são inimigos passíveis de serem mortos por execuções sumárias em operações policiais, o Brasil mais uma vez estará desmentindo o lema da bandeira brasileira. Não há ordem nem muito menos progresso quando os responsáveis pela segurança pública são tão bárbaros quanto aqueles que chacinam nas operações policiais, sob o pretexto de que estes não são “pessoas de bem”.