A tributação dos dividendos no Brasil tem ocupado lugar central no debate contemporâneo do Direito Tributário, por envolver não apenas aspectos econômicos e legais, mas sobretudo constitucionais. Atualmente, os dividendos distribuídos por pessoas jurídicas a seus sócios ou acionistas são isentos do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), conforme disposto na Lei nº 9.249/1995. Essa isenção foi concebida para assegurar a integração entre a tributação da empresa via IRPJ e CSLL e a do sócio, evitando a bitributação econômica e estimulando a atividade produtiva.
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Contudo, o cenário recente tem assistido ao ressurgimento de propostas legislativas que visam encerrar essa isenção sob o argumento de promover maior justiça fiscal e corrigir distorções distributivas. Dentre elas, destaca-se o Projeto de Lei nº 1.087/2025, que prevê a incidência de Imposto de Renda Retido na Fonte à alíquota de 10% sobre lucros e dividendos pagos a pessoas físicas que excedam R$ 50 mil por mês. O projeto propõe, ainda, um teto de carga tributária total (empresa + acionista) de 34% para empresas em geral e 45% para instituições financeiras, com mecanismos de crédito ou dedução, além de exceções pontuais para fundos soberanos e fundos de pensão.
Embora o discurso político apresente a proposta como instrumento de equidade, a medida representa, na prática, um retrocesso na coerência e racionalidade do sistema tributário brasileiro. A incidência de 10% sobre dividendos gera bitributação econômica, fere princípios constitucionais estruturantes e contribui para a regressividade do sistema fiscal, na medida em que desestimula a formalização, o investimento produtivo e o empreendedorismo de pequeno e médio porte.
A Constituição Federal consagra, em seus artigos 145, §1º, 150, II e IV, e 153, §2º, I, princípios que estruturam a tributação justa e equilibrada entre eles a capacidade contributiva, a isonomia, a progressividade e a vedação ao confisco. Tais fundamentos impedem que o Estado tribute duas vezes a mesma manifestação de riqueza, como ocorre quando se alcançam, pelo IRPJ e posteriormente pelo IRPF, os mesmos lucros empresariais. Ao tributar dividendos já sujeitos ao IRPJ e à CSLL, o Estado rompe a lógica da tributação sobre a renda e viola a coerência interna do sistema.
Sob o argumento de corrigir a desigualdade, a proposta acaba por aumentar a regressividade do sistema tributário. Isso porque a alíquota linear de 10% não distingue a natureza da renda nem o perfil do contribuinte, tratando de forma idêntica o grande acionista e o pequeno empresário que utiliza a distribuição de lucros como remuneração legítima do seu trabalho e investimento. A consequência é paradoxal: o ônus fiscal recai justamente sobre quem produz, investe e emprega, enquanto os agentes de maior poder econômico encontram meios de reorganizar suas estruturas para reduzir o impacto da nova carga tributária.
Além disso, a experiência internacional demonstra que tributações mal calibradas sobre dividendos costumam gerar efeitos econômicos adversos, como retração de investimentos, fuga de capitais e proliferação de estruturas artificiais de elisão e evasão fiscal. O Brasil, que já convive com um sistema de alta complexidade e elevado custo de conformidade, corre o risco de acentuar a insegurança jurídica e desestimular o capital produtivo nacional e estrangeiro.
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Mais do que tributar dividendos de forma isolada, o desafio está em reconstruir a lógica da tributação da renda com base em integração, coerência e proporcionalidade. A adoção de uma alíquota fixa, sem mecanismos de compensação, rompe com a racionalidade do sistema e ignora a necessidade de calibragem entre a pessoa jurídica e a pessoa física. A solução constitucionalmente adequada não reside na criação de um novo tributo, mas no aperfeiçoamento do modelo de integração que evite a bitributação econômica e preserve a coerência sistêmica entre os níveis de incidência.
Sob a ótica dos princípios da capacidade contributiva, da isonomia e da não confiscatoriedade, é indispensável que a tributação da renda observe a materialidade real do fato gerador e não transforme a mera distribuição de lucros já tributados na origem em novo evento de incidência. Um caminho mais equilibrado seria a adoção de um modelo de crédito de imposto, em que o valor pago pela pessoa jurídica pudesse ser deduzido ou compensado no momento da tributação do acionista, evitando dupla incidência e respeitando a progressividade do IRPF. Esse modelo, amplamente utilizado em países da OCDE, assegura que a renda seja tributada uma única vez, de forma proporcional à capacidade econômica global do contribuinte, sem comprometer a neutralidade concorrencial nem desestimular o investimento produtivo.
Outra alternativa viável seria o modelo de inclusão parcial, no qual apenas uma fração dos dividendos seria incorporada à base do imposto da pessoa física, especialmente em casos de distribuições desproporcionais ou lucros acumulados em contextos de planejamento abusivo. Essa técnica preserva a justiça fiscal sem penalizar micro e pequenas empresas, que utilizam a distribuição de lucros como forma legítima de remuneração do trabalho e do capital, compatibilizando o dever de contribuir com a função social da empresa.
Além disso, qualquer política de tributação sobre dividendos deve ser acompanhada de mecanismos de neutralidade e segurança jurídica, como a compensação integral dos tributos pagos na pessoa jurídica, a vedação expressa à retroatividade e a preservação do tratamento favorecido às micro e pequenas empresas, conforme o artigo 170, IX, da Constituição Federal. O planejamento de transição e a previsibilidade normativa são indispensáveis para garantir estabilidade econômica e confiança no ambiente de negócios.
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Reformas tributárias sustentáveis não se constroem sobre aumento de carga, mas sobre reorganização racional da base tributável, simplificação de obrigações acessórias e fortalecimento do compliance fiscal. O verdadeiro avanço está em uma tributação da renda que una justiça distributiva, segurança jurídica e estímulo à produtividade, e não em soluções arrecadatórias que, sob o pretexto de promover equidade, aprofundam a regressividade e fragilizam o ambiente econômico.
A justiça fiscal não pode ser construída às custas da coerência jurídica nem do crescimento econômico. A tributação de dividendos, da forma proposta, é um passo atrás na busca por um sistema mais justo e competitivo, e um alerta de que equidade e eficiência não se alcançam com elevação de carga, mas com inteligência institucional e equilíbrio federativo.