O preço invisível da biometria no Benefício de Prestação Continuada

O cadastramento biométrico obrigatório para beneficiários do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e Bolsa Família ainda nem entrou em vigor, mas já causa preocupação e ruído. O que poucos sabem é que a medida, estabelecida por decreto em 23 de julho de 2025, só passa a valer na segunda quinzena de novembro, e apenas para novas concessões de benefícios cujos requerentes não possuam registro biométrico em nenhuma base do governo federal. Mesmo assim, o impacto é inevitável. O avanço digital pode até ser justificado pelo discurso da segurança e da modernização, mas, na prática, ameaça transformar um direito social em privilégio de quem tem acesso a serviços digitais.

O BPC, previsto na Constituição e regulamentado pela Lei nº 8.742/1993 (LOAS), garante um salário mínimo mensal a pessoas idosas e com deficiência em situação de vulnerabilidade. Trata-se de um instrumento essencial de amparo social, que protege milhões de brasileiros. No entanto, essa rede de proteção vem se estreitando, com exigências cada vez mais difíceis de cumprir. A biometria, que deveria ser uma ferramenta de inclusão e transparência, pode se tornar o filtro que separa quem tem direitos de quem consegue exercê-los.

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A Portaria Conjunta MDS/INSS nº 28, publicada em julho de 2024, determinou que o cadastramento biométrico passará a ser requisito obrigatório para novos pedidos e atualizações. A intenção é louvável: integrar bancos de dados e combater fraudes. Mas a execução ignora um fato simples e cruel: boa parte dos beneficiários do BPC vive em regiões sem acesso fácil a cartórios, internet ou serviços públicos digitalizados. O resultado são filas, deslocamentos longos e, muitas vezes, a perda do benefício por falta de condições práticas de atender à exigência.

Normas posteriores, como as Leis nº 14.973/24 e 15.077/24, reforçaram a obrigatoriedade e ampliaram a necessidade de atualizações cadastrais, sem qualquer investimento proporcional em estrutura. O INSS, já sobrecarregado, enfrenta uma fila de mais de 650 mil requerimentos, com carência de servidores e longos prazos de análise. A modernização está sendo implantada sobre uma base frágil, e quem paga o preço são os mais vulneráveis.

A Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência, em seminário recente, chamou atenção para a escalada das dificuldades enfrentadas pelos beneficiários. Nos últimos quatro anos, os pedidos de BPC cresceram 283% entre pessoas com deficiência e 81% entre idosos, números que não foram acompanhados por melhorias operacionais. Paralelamente, mais de 400 mil ações judiciais tramitam hoje sobre o benefício, muitas questionando bloqueios e exigências que, na prática, inviabilizam o acesso ao amparo garantido pela Constituição.

A biometria pode ser uma aliada do Estado no combate à fraude e na modernização do sistema. Mas, quando aplicada de forma rígida e sem considerar desigualdades regionais e estruturais, ela deixa de ser um avanço e se torna um mecanismo de exclusão. É uma política pública digital desenhada para um país que ainda é analógico em suas bases.

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O prazo de 120 dias que antecede a vigência da medida termina em novembro e será um divisor de águas. Se o Estado não se preparar com políticas de compensação, como atendimento móvel, exceções bem definidas e cronogramas graduais, corre o risco de criar uma nova geração de invisíveis digitais: brasileiros que existem para a Constituição, mas não para o sistema.

Modernizar é necessário. Mas quando a tecnologia começa a decidir quem tem ou não direito de comer, é sinal de que o problema já não é técnico, é moral.

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