1964: o ano que ainda não terminou e a ADI 5161

Há leis que dormem, mas não desaparecem. Apenas aguardam o momento oportuno para reaparecer. Algumas resistem à história não porque sejam boas, mas porque o Estado nunca aprendeu a desapegá-las do seu instinto de controle. O artigo 32 da Lei nº 4.357, de 1964, é um desses fantasmas jurídicos. Criado nos primeiros meses do regime militar, ele proíbe empresas com débitos inscritos em dívida ativa de distribuir lucros, sob pena de multa de 50% sobre o valor distribuído. Foi a consagração legal de uma lógica em que o contribuinte era visto como inimigo e a punição como método de cobrança.

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A Constituição de 1988 parecia ter sepultado essa mentalidade. O novo texto constitucional afirmava os pilares da livre iniciativa, do devido processo e da limitação do poder de tributar. O Estado que antes punia para cobrar passou a ser chamado a cobrar dentro do Direito. Parecia o fim de um ciclo autoritário, o início de um pacto fundado na confiança entre o cidadão e a lei.

Mas o Brasil tem o talento singular de reviver o que o tempo já deveria ter superado. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional reavivou o artigo 32, e o caso chegou ao Supremo Tribunal Federal na ADI 5161, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil. O tribunal, agora, discute se uma norma concebida no auge do autoritarismo pode ter validade em 2025.

O relator, ministro Luís Roberto Barroso, votou pela constitucionalidade com restrições, na linha do que costuma a fazer. O ministro Flávio Dino concordou com o resultado, mas divergiu nos fundamentos. Alexandre de Moraes pediu vista, e o julgamento foi suspenso. À primeira vista, o debate parece técnico. Afinal, qual é o alcance de uma norma de 1964 diante da Constituição de 1988? Ela voi recepcionada pela nova ordem?  Na verdade, é uma discussão muito mais profunda, que envolve coerência histórica e o tipo de Estado que sobrevive por trás das palavras.

A persistência dessa regra revela algo incômodo. Revela que o País ainda convive com uma concepção de poder tributário que não se desprendeu da herança autoritária. A Constituição transformou o contribuinte em sujeito de direitos, mas o aparelho estatal ainda o trata como apenas como “sujeito ao Direito”, nada mais. As formas mudaram, o espírito permanece.

Sob o pretexto de garantir arrecadação, o Estado amplia instrumentos de constrição, bloqueia dividendos, limita a autonomia empresarial e justifica tudo em nome da eficiência fiscal. A fronteira entre o interesse público e o abuso torna-se difusa. O resultado é um sistema que confunde obediência com justiça e força com legitimidade.

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Não se trata de negar a importância da cobrança, que segue podendo se efetuada normalmete. O problema é o método. Cobrar dentro do Direito é muito diferente de punir para cobrar. O primeiro é um exercício de autoridade legítima; o segundo, de poder arbitrário. Quando a sanção antecede o devido processo legal, o Direito se torna simulacro de castigo. Castigo por exercer a livre iniciativa e a atividade empresarial e distribuir lucros, mesmo na pendência de discussões tributárias, cujo desfecho é incerto.

Nosso contencioso tributário já supera, segundo estimativas recentes, R$ 5,69 trilhões, (relatórios de 2020). Esse valor equivale a cerca de 74,8% do Produto Interno Bruto (PIB) daquele ano, estimativas que se mantêm praticamente intocadas até os dias de hoje e, ainda, agravadas por um relatório do Superior Tribunal de Justiça, que alerta que a reforma tributária pode triplicar o número, o que sugere que o estoque ainda está em evolução. Nesse contexto, submeter empresas a este tipo de restrição é uma inaceitável interferência no direito à liberdade empresarial, comprometendo a credibilidade do País.

O caso da ADI 5161 é emblemático porque põe à prova a maturidade institucional do País. O Supremo Tribunal Federal decidirá se o Brasil aprendeu, de fato, as lições do próprio passado ou se continua prisioneiro dele. Não é apenas um julgamento sobre um artigo. É um julgamento sobre a democracia que o País diz possuir.

Há uma tentação constante de acreditar que o autoritarismo se reconhece apenas pela truculência. Engano. A tirania contemporânea é mais sutil. Ela se veste de legalidade, cita princípios, invoca precedentes e se esconde atrás da linguagem técnica. É nesse ponto que o Direito corre o risco de trair sua vocação.

O poder, quando não conhece limites, transforma-se em instrumento de opressão e a Constituição em mero discurso programático. O Direito, nascido para proteger e conter, converte-se em instrumento de submissão. E o Estado, que deveria servir à lei, volta a ser senhor dela. Se o Supremo declarar constitucional um dispositivo forjado na lógica de 1964, não estará apenas validando uma norma antiga. Estará afirmando que o País ainda não terminou de atravessar aquele ano.

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A democracia se mede não só pela vontade de criar leis, mas pela coragem de revogar as que não merecem sobreviver. O Brasil precisa escolher se deseja ser um Estado de Direito ou apenas um Estado de regras. A diferença é sutil, mas decisiva. No primeiro, a lei limita o poder, enquanto no segundo, o legitima.

O julgamento da ADI 5161 dirá qual dos dois caminhos seguimos. E talvez então saibamos se 1964, afinal, terminou ou se apenas mudou de feitio.

 

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