ADO 55: A instituição do imposto sobre grandes fortunas

A CF, art. 153, inciso VII, prevê que compete à União instituir impostos sobre grandes fortunas (IGF), nos termos de lei complementar. Passadas mais de três décadas sem sua aprovação, em 2019 o PSOL ajuizou a ADO 55, pretendendo ver declarada a omissão inconstitucional do Congresso Nacional em instituir o IGF.

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Já no seu começo, a petição inicial apresenta como fundamento do pedido o seguinte: “De acordo com o princípio fundamental do Estado de Direito Republicano, o poder político deve ser exercido para a realização, não de interesses particulares, mas do bem comum do povo (res publica). Segue-se daí que toda competência dos órgãos públicos, em lugar de simples faculdade ou direito subjetivo, representa incontestavelmente um poder-dever.” (p. 2).

Argumenta que “a imposição tributária das grandes fortunas é uma aplicação dos objetivos fundamentais da nossa República, tais como expressos no art. 3º, incisos I e III da Constituição Federal, a saber: “I – construir uma sociedade livre, justa e solidária”; bem como “III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (p. 4).

Logo emenda, entretanto, com citação doutrinária afirmando que o IGF não tem efeito substancial sobre a distribuição de riqueza, mas eventual “efeito marginal poderia ser preferível a nenhum” (p. 5).

Em 2021, o então relator ministro Marco Aurélio proferiu seu voto no plenário virtual. Em síntese, julgou procedente o pedido formulado na ação, fundamentando no “precedente” da ADI 3.682, da relatoria do ministro Gilmar Mendes, sobre a falta de regulamentação do art. 18, § 4º, da CF, quando se afirmou que “As peculiaridades da atividade parlamentar que afetam, inexoravelmente, o processo legislativo, não justificam uma conduta manifestamente negligente ou desidiosa das Casas Legislativas, conduta esta que pode pôr em risco a própria ordem constitucional”.

O relator citou, ainda, a ADI 1.458, cujo relator ministro Celso de Mello assim se manifestou: “A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental. […] É preciso proclamar que as Constituições consubstanciam ordens normativas cuja eficácia, autoridade e valor não podem ser afetados ou inibidos pela voluntária inação ou por ação insuficiente das instituições estatais. Não se pode tolerar que os órgãos do Poder Público, descumprindo, por inércia e omissão, o dever de emanação normativa que lhes foi imposto, infrinjam, com esse comportamento negativo, a própria autoridade da Constituição e efetuem, em conseqüência, o conteúdo eficacial dos preceitos que compõem a estrutura normativa da Lei Maior.”.

Chegou a mencionar o entendimento clássico quanto à facultatividade característica da competência tributária, a partir de Roque Antônio Carrazza no sentido de que “nada impede que a pessoa política deixe de exercitar, no todo ou em parte, sua competência tributária. Este, inclusive, é o corolário natural da incaducidade da competência tributária.”[1] No entanto, consignou que seria preciso considerar o contexto de crise econômica e déficit persistente das contas públicas, de modo que o IGF seria um mecanismo apto para o aumento da arrecadação.

Como se vê, o voto do ministro relator acabou se investindo da obrigação de resolver um problema (o do Erário) que não compete ao STF, e, pior, por uma via (a da judicialização) que não encontra guarida constitucional. A falta de disponibilidade de caixa e de equidade no sistema tributário não se devem à falta do IGF. Além disso, da instituição do IGF podem advir efeitos negativos: desestímulo à formação de poupança, fuga de capitais para o exterior, com impactos na produção e no consumo, tornando esse tributo potencialmente inapto para proporcionar aumento de arrecadação e, menos ainda, qualquer tipo de “justiça social”.

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Ao menos, o ministro relator se absteve de suprir a lacuna normativa, sem propor uma regulamentação provisória do IGF em substituição ao legislador. Tampouco fixou prazo ao legislador para a adoção de providências. Em seu voto, limitou-se a indicar a obrigação do Congresso Nacional de legislar.

A própria CF, em seu art. 150, inciso I, estabelece, entre os direitos fundamentais dos contribuintes, que é vedado à União, aos Estados, ao DF e aos Municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça. Ou seja, a fixação de fato gerador, base de incidência, definição de alíquota, sujeito passivo, etc. são matérias sujeitas ao princípio da legalidade em sentido estrito, exigindo lei formal tanto para a instituição, quanto para a majoração de tributos.

Trata-se da garantia que ficou conhecida como no taxation without representation (“não há tributação sem representação”), para expressar que o parlamento precisa aprovar todos os tributos, assentando a noção de legalidade tributária. Depois, esse foi o slogan utilizado na Revolução Norte-americana com o significado de que não se podia cobrar tributos de pessoas (no caso, os colonos) que não tinham representantes eleitos (no parlamento da Coroa britânica) para tomar decisões sobre essas cobranças e o uso do dinheiro arrecadado. Essa perspectiva histórica dá uma boa dimensão da importância dessa garantia.

Além disso, há farta literatura no sentido de que as normas constitucionais que atribuem competência tributária estabelecem uma faculdade aos entes, como Carrazza, por exemplo, citado no voto. O próprio art. 8º do CTN prevê que “O não-exercício da competência tributária não a defere a pessoa jurídica de direito público diversa daquela a que a Constituição a tenha atribuído”. Ou seja, embora indelegável (privativo), o exercício da competência tributária não é impositivo; admite-se o não exercício; os entes criam se e quando lhes aprouver. Trata-se de uma decisão de política fiscal, que depende exclusivamente dos poderes Legislativo e Executivo.

A instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente é mais uma questão de responsabilidade fiscal, nos termos do art. 11 da LRF (LC 101/200), e com consequências previstas nesse microssistema normativo, o que pressupõe considerar também a perspectiva da despesa pública.

Nesse sentido, a má-qualidade e o excesso de gastos acabam implicando endividamento, mais emissão de moeda, aumento da taxa de juros, tendência de inflação, pressão para o aumento da carga tributária, cálculo de oportunidades de investimento e consumo pelos agentes econômicos, etc. Tudo isso, longe de ser meras abstrações, impactam diretamente o custo Brasil e a vida de todos os brasileiros, enriquecendo ou empobrecendo a sociedade.

Nos termos da manifestação da PGR: “O Poder Judiciário não pode, nem mesmo pela via da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, determinar a criação provisória de tributo, sob pena de atuar como legislador positivo e, dessa forma, de afrontar o princípio da divisão funcional do Poder e o princípio da legalidade tributária”.

As 6 páginas da petição inicial e as 7 do voto do ministro relator Marco Aurélio sequer cogitam da possibilidade de efeitos negativos que podem advir da instituição do IGF, sendo esse ponto um dos impasses na deliberação. Outra dificuldade não menos desprezível é o desacordo sobre a partir de quanto se deve considerar existir uma grande fortuna.

O discurso até aqui mira exclusivamente na ideia de que a mora é injustificável e que não é admissível transformar a Constituição em “sino sem badalo”, na expressão de José Carlos Barbosa Moreira. O problema é que o jurídico, a lógica dos mandamentos constitucionais, não resolve a questão no mundo dos fatos.

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Nesse sentido, a discussão não trouxe quaisquer aspectos da teoria econômica, o que seria essencial nesse debate. Não mencionou, por exemplo, a noção da Curva de Laffer, que postula existir uma taxa impositiva ótima que maximiza a arrecadação de tributos pelo governo. A curva tem a forma de U invertido e representa graficamente a relação entre o nível de arrecadação (eixo vertical) e o nível de tributação (eixo horizontal) de uma nação. A partir do ponto ótimo (em que a arrecadação é maior), qualquer aumento adicional na tributação pode fazer com que os ingressos públicos diminuam, em razão do desincentivo à atividade econômica e à evasão já comentados.

Por mais que dentro da própria teoria econômica haja controvérsia sobre a Curva de Laffer e dificuldade em determinar com precisão o ponto ótimo de arrecadação em uma economia real, pois existem outros fatores envolvidos, o fato é que a discussão sobre uma suposta omissão inconstitucional na instituição de um imposto sobre grandes fortunas não é um tema exclusivamente jurídico, nem deveria ser resolvido com a intervenção do Poder Judiciário.

Para se ter uma ideia da questão, segundo o press release da consultoria Henley & Partners, mesmo sem a exação do IGF, o Brasil deve registrar só no ano de 2025 um êxodo de 1.200 milionários (em dólares), representando uma transferência de riqueza para o exterior da ordem de US$ 8,4 bilhões em ativos. Colocando em ordem decrescente a coluna Millionaire Migration do Country Wealth Flows, projeta-se que o Brasil ficará na 6ª posição entre os países com maior saída de indivíduos de alta renda no mundo em 2025 (sendo o 1º da América Latina), atrás somente de Reino Unido, China, Índia, Coreia do Sul e Rússia. Imagine-se o eventual quadro com a instituição de mais tributação.

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Como se vê, o IGF é um tema complexo e a falta de consenso político é um sintoma disso. A rigor, não há inertia deliberandi das Casas Legislativas em casos como o do IGF, em relação ao qual existem proposições em tramitação: PLP 277/2008 e outros apensados, como PLP 9/2019. No Senado, há o PLP 183/0219. Atualmente, as notícias são de que apenas Espanha, Noruega, Suíça e Colômbia mantém tributos como o IGF. Países como Alemanha, Áustria, Dinamarca, Finlândia, Irlanda, Itália, Japão, Luxemburgo e Suécia abandonaram a ideia, seja pelo custo de administração, seja pelo efeito econômico perverso.

Após o voto do relator ainda em 2021, o ministro Gilmar Mendes pediu destaque levando o julgamento ao plenário físico. Na sessão do último dia 23 de outubro, o STF retomou o julgamento da ADO 55. A ver como terminará a discussão.

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[1] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 567.

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