No “Microssistema Processual de Proteção dos Vulneráveis”[1], um dos desafios contemporâneos é o estabelecimento de mecanismos de cooperação interinstitucional harmônicos e equilibrados com vistas à efetividade dos direitos dos mais frágeis socialmente. Dito de outro modo, é necessário dar à cooperação uma perspectiva interinstitucional e panprocessual com vistas à concretização de direitos fundamentais.
Nessa senda, ao lado de todas as discussões[2] já travadas sobre cooperação processual, o art. 6º do CPC deve ter interpretação redimensionada para alcançar (e estimular) a cooperação interinstitucional e panprocessual apta a buscar soluções holísticas para questões violadoras de dignidade humana a partir de múltiplas causas de vulnerabilização social que atingem a pessoa vulnerável quando ingressa em juízo como autor ou réu.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
O fenômeno pode ser bem identificado em causas de família, infância e adolescência, violência doméstica e superendividamento que afetam o mesmo indivíduo ou núcleo familiar, sem um tratamento adequado essas demandas cumuladas levam a um ciclo de declínio.
Normalmente, os profissionais que atuam em uma demanda não têm conhecimento das demais, o sistema de justiça colabora para que a pessoa vulnerável saia ao final do processo com um resultado ainda pior. Aqui passa a ser importante a visão de todas as demandas, o diálogo entre os profissionais envolvidos, em uma perspectiva panprocessual, holística, para além da demanda individualizada.
No iceberg social entorno ao mundo jurídico, há sempre uma (grande) camada de conflitos oculta por detrás da lide processualizada. Assim, por exemplo, no passado da vida de uma mãe presa por suspeita de tráfico de drogas ilícitas pode estar a pobreza facilitadora do cooptar por organizações criminosas e a necessidade de alimentação dos filhos, sendo ela a única provedora da prole; e, para além do mundo prisional da mãe, deve-se falar em uma “comunicação intersubjetiva dos efeitos da vulnerabilidade”[3], haverá ainda uma criança jaz sem mãe e à própria sorte nas ruas em um trágico momento de grande vulnerabilidade.
Desse modo, entrelaçam-se questões econômicas, penais, familiares e infantojuvenis. O problema do agrupamento surge quando essas lides são concomitantes e ainda é possível utilizar o conhecimento de uma para melhor julgar as demais, seja através de prova emprestada e do diálogo entre os profissionais, seja através da ponderação para que o direito material não prive o vulnerável da sua dignidade perante o acúmulo de demandas.
Esse agrupamento permite o tratamento adequado panprocessual do conflito. Evitando, ou diminuindo, os riscos de que a partir de necessidades jurídicas não atendidas (“unmet legal needs”[4]) inicie-se um “ciclo do declínio” (“cycle of decline”[5]) – bem rememorado em brilhante tese de Júlio Azevedo[6]. É justamente por essa razão que situações dessa espécie exigem o tratamento articulado e com visibilidade aos conflitos agrupados (“Problem Clustering”[7]).
Com efeito, o entrelaçar de múltiplas formas de vulnerabilização, em questões aparentemente tão distintas no campo jurídico, deve ensejar imediata cooperação interinstitucional e diálogo qualificado entre as instituições do Sistema de Justiça, a fim de que este Sistema ofereça respostas jurídicas efetivas aos problemas sociais, deixando para trás a (má) fama de “enxugar gelo”, evitando que a solução dada em um processo prejudique ou impossibilidade a solução de problema jurídico ainda mais grave no outro. Para tanto, a cooperação deve possuir dupla dimensão (interinstitucional e intrainstitucional) necessária à eficiência e eficácia do Sistema de Justiça.
A cooperação interinstitucional decorre da capacidade de diálogo entre as instituições do sistema de justiça. Por outro lado, a cooperação intrainstitucional entende-se, especialmente, o diálogo interno a cada instituição entre os promotores de justiça, os juízes e os defensores públicos que atuem nas demandas pendentes, isso porque muitas vezes esses colegas não sabem da existência das outras demandas e atuam e julgam de forma totalmente indiferente. Gostaríamos de frisar, talvez essa atuação intrainstitucional seja a maior e mais efetiva forma de minimizar o ciclo de declínio.
A relação interinstitucional não é uma novidade e tem sido reforçada pelas legislações protetivas. No âmbito da proteção das pessoas em situação de vulnerabilidade, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8.069/1990) é pródigo em buscar estabelecer relações interinstitucionais cooperativas em diversos dispositivos, inclusive quanto à questão das adoções (art. 50, § 7º) e especialmente quando determina a “integração” (art. 70-A, II) do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Conselhos (Tutelar e de Direitos da Criança) e entidades não governamentais voltadas à pauta dos direitos das crianças. Ademais, o ECA (art. 88, V e VI) também menciona, enquanto diretriz da política de atendimento, a integração operacional entre órgãos judiciários, ministeriais, defensoriais, entre outros.
Ao mirar o Código de Processo Civil (CPC), tem-se ainda, ao menos, três exemplos: (I) Nas ações de direito de família, o CPC (art. 698, parágrafo único), com alteração introduzida pela Lei 13.894/2019, consignou-se a intervenção ministerial obrigatória quando existente vítima de violência doméstico-familiar no caso sub judice; (II) Nas ações possessórias multitudinárias envolvendo pessoas em situação de vulnerabilidade, o § 1º do art. 554 do CPC remete à necessidade de dupla intimação público-institucional (ministerial e defensorial) para fins de integração procedimental; (III) O Judiciário deve oficiar ao Ministério Público e à Defensoria Pública quando confrontar demandas individuais repetitivas, em claro intuito de estimular a efetiva solução molecular de conflitos sociais (CPC, art. 139, X).
Com efeito, o objetivo das regras supracitadas, muito além da mera formalidade processual, é viabilizar que os órgãos do Sistema de Justiça dialoguem e tomem conhecimento dos pormenores das demandas, podendo assim exercer bem suas funções em caráter integrado e multissetorial – reconhecendo eventuais questões penais, cíveis, familiares e outras formas de vulnerabilização das partes envolvidas, para atuar de modo eficaz, preventivo ou, ao menos, reduzindo danos.
A dimensão interinstitucional da cooperação busca conferir maior efetividade aos direitos fundamentais em risco e afetados pelo “ciclo de declínio” decorrente do não atendimento de diversas necessidades jurídicas, em um complexo “ciclo de vulnerabilização”, o qual pode conduzir um dramático “círculo vicioso da vulnerabilidade”[8].
Com a atuação integrada, democrática e cooperativa, à luz dos fins e capacidades institucionais respectivas, pretende-se reforçar o caminho a um virtuoso “ciclo de avanços” (“cycle of advancement”[9]), porquanto reputa-se possível ao Sistema de Justiça auxiliar eficazmente no abrandamento dos efeitos nocivos do “ciclo de desvantagens” (“cycle of disadvantage”[10]) vivido por pessoas em situação de vulnerabilidade.
Por outro lado, a cooperação intrainstitucional é mais recente. Cooperação entre colegas, por incrível que possa parecer, depende de reconhecer que independência não afasta o dever de trabalhar em conjunto pela unidade de atuação. Exige a visão não apenas da árvore (a demanda diante de si), mas da floresta (o conjunto de demandas), algo para o que não estávamos preparados.
Essa abordagem panprocessual de conflitos envolvendo vulneráveis pode ensejar os melhores frutos, com busca ativa de demandas pendentes sobre os mesmos réus e autores que possam estar relacionadas, troca ativa de informações entre os colegas que atuam nos casos e desenho conjunto de estratégias de atuação.
Isso já ocorre nos escritórios de advocacia que representam repeat players e trabalham com o acervo do cliente para propiciar o serviço mais adaptado às suas necessidades holísticas. Por que não deveria ocorrer em relação aos ministérios públicos e defensorias públicas? Normalmente esses atores são repeat players nos casos que envolvem pessoas vulneráveis, apenas lhes falta organização e atenção ao problema.
Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email
O Poder Judiciário, por outro lado, está em todas essas demandas e tem todas as condições de obter nos seus sistemas de controle rapidamente as informações sobre o agrupamento das demandas pendentes para prestar essa informação nos autos e notificar seus colegas, o Ministério Público e as partes e seus representantes.
A postura mais ativa nessa busca decorre da própria natureza de garantidor que assume perante a pessoa vulnerável no microssistema processual de proteção do vulnerável. Em síntese, deve-se estimular uma renovada visão da cooperação processual, de ênfase interinstitucional e intrainstitucional, voltada ao abrandamento dos múltiplos fatores de vulnerabilidade e ao enfrentamento articulado dos problemas jurídicos decorrentes das nefastas consequências das necessidades jurídicas não atendidas.
Isso não implica necessariamente alteração na competência, agrupamento físico ou digital das demandas, mas implica um grau de atenção e conhecimento sobre a existência de outras demandas pendentes para as mesmas partes e a preocupação com o tratamento integral do caso, mitigando os riscos de ciclo de declínio e tutelando mais adequadamente o(s) direito(s) das pessoas em situação de vulnerabilidade.
[1] ZANETI JR, Hermes. CASAS MAIA, Maurilio. Microssistema Processual de Proteção dos Vulneráveis e as lentes do Ministério Público e da Defensoria Pública. São Paulo: Tirant, 2025.
[2] Ex.: MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Ed. RT, 2009, p. 101-103; DIDIER JR., Fredie. Os três modelos de Direito Processual: Inquisitivo, dispositivo e cooperativo. In: LEITE, George Salomão. SARLET, Ingo Wolfgang. CARBONELL, Miguel. (coord.). Direitos, deveres e garantias fundamentais. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 427-439.
[3] CASAS MAIA, Maurilio. O ciclo jurídico da vulnerabilidade e a legitimidade institucional da Defensoria Pública. Fortaleza-CE: UNIFOR, 2020, p. 55-56. [Tese de doutorado. Orientação: Rafael Xerez]
[4] Para um pouco mais sobre legal needs: (1) Alves, Cleber Francisco. Meeting Imediate Legal Needs via the Brazilian Public Defender’s Office: na exemplar case. In: SILVA, Vinícius Alves Barreto da. (Org.). Acesso à Justiça nas Américas. Rio de Janeiro: Fórum Justiça, 2021, p. 84-102; (2) ALVES, Cleber Francisco; FARIA, Raquel de. Meeting Immediate Legal Needs by the Public Defender in Brazil: an exemplary case. In: UCL. International Conference 2018: Access to Justice and Legal Services. London: UCL, 2018. p. 96-97; (3) CASAS MAIA, Maurilio. Justiça consensual e Defensoria Pública multiportas: o Caso Brumadinho, o acesso à Justiça e as necessidades jurídicas. Revista da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 6, p. 135-151, nov. 2020.
[5] Organisation for Economic Co-operation and Development. Equal Access to Justice for Inclusive Growth: Putting People at the Centre, OECD Publishing, Paris: OECD, 2019, p. 15.
[6] Em tese cuja versão comercial já nascerá como referência obrigatória: AZEVEDO, Júlio Camargo de. Assimetria de informação como barreira multidimensional ao acesso à justiça: fundamentos para a reconstrução dos direitos à informação e à orientação jurídica na sociedade contemporânea. São Paulo: USP, 2025, p. 201-203. [Tese de doutorado orientada por Kazuo Watanabe].
[7] Pleasence, Pascoe. Balmer, Nigel J. Sandefur, Rebecca L. Paths to Justice: A Past, Present and Future Roadmap. London: UCL, 2013, p. V e 36.
[8] CASAS MAIA, Maurilio. O ciclo jurídico da vulnerabilidade e a legitimidade institucional da Defensoria Pública. Fortaleza-CE: UNIFOR, 2020, p. 54-55. [Tese de doutorado. Orientação: Rafael Xerez]
[9] Organisation for Economic Co-operation and Development. Equal Access to Justice for Inclusive Growth: Putting People at the Centre, OECD Publishing, Paris: OECD, 2019, p. 46.
[10] Organisation for Economic Co-operation and Development. Idem, p. 126.