O senador Magno Malta (PL-ES), no último dia 16 de setembro, abre uma live em suas redes sociais. Ao seu lado está Carlos Bolsonaro (PL), vereador do Rio de Janeiro. Quando indagado sobre o estado de saúde de seu pai, Jair Bolsonaro, Carlos diz o seguinte: “Situação de saúde dele é delicada, a cada dia come menos, descobriu-se hoje que ele está com um problema de falta de ferro no sangue, a possibilidade de uma nova hérnia surgindo nele, retiraram sete pedaços de pele para ver possibilidade de um câncer, fora aqueles vômitos constantes, soluços que dormindo ele tem, uma coisa agoniante, não sei como ele consegue lidar com isso”.
Ouvi atentamente o relato de um filho abatido, preocupado com a saúde do seu progenitor e, assumindo que o relato é verossímil, fiquei me perguntando como um ex-presidente da República, há pouco tempo poderosíssimo, com um histórico de atleta e chofer da extrema direita brasileira chegou naquele estado. Que trajetória de glória antecede um ocaso melancólico deste tipo?
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Eldorado Paulista, anos 1970. Carlos Lamarca foi perseguido pela ditadura militar e, em praça pública, baleou dois agentes do regime. Jair, então com 15 anos de idade, ficou mobilizado por aquela operação toda. Segundo ele próprio, foi neste momento que teve despertado o interesse pelo Exército brasileiro.
Apenas quatro anos depois ingressaria na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman). Vivíamos o auge da Guerra Fria, o fantasma do comunismo assombrava o mundo polarizado entre Estados Unidos e União Soviética e o cadete reproduzia com louvor o arsenal retórico das Forças Armadas sobre o que significa ser patriota, sobre qual o maior inimigo da pátria e como se proteger contra ele.
Com 28 anos, chegou ao seu ápice na carreira militar. Tornou-se capitão. Jair entrou na política, entre outras polêmicas, a partir da defesa dos interesses da sua classe, em especial dos baixos salários que os praças recebiam. Foi por conta de um artigo que escreveu na revista Veja que recebeu 15 dias de punição por indisciplina. Desagradou os seus superiores. O que era para ter sido um revés na sua vida acabou sendo uma catapulta para a entrada na vida pública.
Ganhou destaque, foi eleito deputado federal e atuou por sete mandatos (chancelados ao longo do tempo pelas urnas eletrônicas), passando por seis partidos políticos (PDC, PTB, PFL, PP, PSC e PSL).
Jair foi um deputado do baixo clero – expressão usada nos corredores do Congresso Nacional para designar aqueles parlamentares sem posições de destaque, sem discursos expressivos, sem projetos de lei que ganharam notoriedade e também sem cargos importantes em comissões. Era mais um entre os 513, falando para sua base eleitoral. Ouvido por alguns, ignorado por milhões. Tinha um reduto consolidado, reeleições garantidas e uma vida pacata.
Não lhe incomodava em nada ser baixo clero: sem holofotes, sem confusões. Isso mudou quando, nos anos 2010, passou a figurar em programas humorísticos, ir em mesas redondas, dar entrevistas, ampliando o alcance da sua voz sobre temas que defendeu ao longo de toda sua carreira: reverberações e impropérios sobre ditadura militar, ódio à pauta LGBT, extenso vocabulário de desrespeito aos direitos humanos, comunidades tradicionais, mulheres e tantas outras minorias sociológicas.
Nos oito anos seguintes o país viveria uma reviravolta de fazer inveja a qualquer roteiro de Orson Welles. Das manifestações de junho de 2013, passando pelo 7×1 aplicado pela Alemanha no Brasil em 2014 até o afastamento de Dilma Rousseff em 2016, testemunhamos o ápice do antipetismo no país; mas este movimento precisava de um condutor, de um maestro. E de onde menos se esperava, estava ele, que além de Jair também era Messias.
Na esteira da explosão das redes sociais como forma irreversível de comunicação política, Jair tinha oito segundos de tempo de televisão quando concorreu à Presidência em 2018. Preciso lembrar ao leitor que o líder das pesquisas naquele ano foi preso em abril e o seu sucessor seria efetivado como cabeça de chapa apenas em setembro. Eleições atípicas? Sim, mas o protagonista não tinha nada a ver com aquilo tudo.
O mês de setembro inclusive é cabalístico para Jair. Foi no dia 6 que ele, em um comício em Juiz de Fora (MG), foi convocado ao papel de mártir, mas se recusou a aceitá-lo. Jair sofreu um atentado a faca no meio da multidão. Seja por méritos próprios, deméritos de quem o atacou ou intervenção divina, ele sobreviveu e não apenas isto: foi eleito presidente no segundo turno, com 55,13% dos votos válidos. Nada mal para quem havia saído de Glicério, no interior de São Paulo. O capitão subiu a rampa do Planalto em 1º de janeiro de 2019.
A saga do quase-mártir “imbrochável” atingiu aquele momento em que o espectador, diante da tela do cinema, vibra. O protagonista sai do momento mais difícil da sua vida para governar o maior país da América Latina, institucionalizando a extrema direita e prometendo acabar com a corrupção no país, desmontando o presidencialismo de coalizão. Era o salvador messiânico contra o establishment político, o redentor contra o avanço do comunismo.
Jair teve, sejamos sinceros, seis bons meses de governo. Ele fez o que pôde, mas a realidade é que ele podia pouco. Foi um momento de muito aprendizado para ele, sem dúvidas, quando se deu conta de que o papel do presidente, em um regime republicano, depende de outros dois Poderes. Um que ele deveria conhecer bem, mas infelizmente não sabia nada, o Legislativo. E o outro que ele subestimou com todas as suas forças e aprendeu, na própria pele, a respeitar: o Judiciário.
Infelizmente o protagonista descobriu, da pior forma, que governar é uma chatice. Enfrentou uma crise diplomática ambiental por conta das queimadas desordenadas que tomaram o território nacional (afinal, quem imaginaria que desmantelar o Ibama e afrouxar a legislação ambiental poderia trazer problemas?).
Para não passar batido, uma informação importante na saga do protagonista. 2019 foi o ano em que o ministro do STF Alexandre de Moraes, tornou-se o relator do inquérito das fake news. Ninguém podia imaginar que Michel Temer, que também tem no mês de setembro uma data importante para si (afinal nasceu no dia 23), assumindo a Presidência após o impeachment de Dilma, indicaria Moraes e que em seis anos Alexandre e Jair dividiriam a mesma sala, em papéis opostos.
Grande parte do reinado de Jair, apesar da sua preguiça de governar, foi de dificuldades. Isto porque o mundo inventou de mergulhar numa pandemia global e Jair não estava lá muito disposto (vamos combinar) de enfrentar esta tal de crise sanitária. Por conta disso, mobilizou sua equipe para sabotar qualquer tentativa de mitigar os feitos da Covid-19 na população da qual deveria cuidar. Aqui e ali tentava agir com bom humor, sendo espirituoso com o tamanho da crise aqui, desdenhando da vacina ali. É nessa parte da história que o Zé Gotinha fica esquecido.
Jair conseguiu ter algum sossego em 2022, quando acelerou a locomotiva do seu governo para tentar a reeleição. E ninguém pode dizer que ele não tentou. Acusou o sistema de fraude, duvidou das urnas eletrônicas, tentou impedir eleitores de votar no dia da eleição, reuniu embaixadores para mostrar que a legitimidade da disputa estava comprometida. Por esta última ação ele foi declarado inelegível, podendo concorrer a cargos eletivos somente em 2030, quando terá, se sua saúde permitir, 75 anos.
O certo é que Jair em 2022 atingiu uma marca histórica e ninguém tirará este feito do seu currículo: foi o primeiro presidente, desde a redemocratização, a não conseguir se reeleger. Perdeu a disputa por uma margem mínima, para aquele que havia sido o favorito lá em 2018. Chateado com o resultado, haja vista que pela primeira vez em 30 anos ficaria sem mandato, não reconheceu a derrota e o que se seguiu foi um circo de horrores.
Caminhoneiros bloquearam as estradas, pais de família se penduraram em caminhões, avós deixaram o crochê para pedir intervenção militar, tios e tias montaram barracas na chuva, dia após dia, na ânsia para que o milagre do Messias enfim os redimisse. Mas não aconteceu.
O que efetivamente aconteceu foi uma catástrofe, que entrou para o anuário político como o 8 de Janeiro de 2023. “Uns malucos” disse o Jair, invadiram a Praça dos Três Poderes em Brasília e depredaram tudo. Pediam eles, os malucos, tudo o que Jair vociferou ao longo da vida. Os lunáticos, que foram alimentados por todo tipo de linha de transmissão do WhatsApp, pensaram que estavam fazendo uma homenagem ao legado político do capitão, que nada mais era do que uma inspiração para toda a horda de golpistas.
E assim o chofer da extrema direita fracassou mais uma vez. “O presidiário não vai subir a rampa” era o que dizia aos seus asseclas e também o que ouvia deles. O conteúdo profético da frase se manifestou em mais um mês de setembro inesquecível para Jair e família. Eis que no dia 11, que já foi efeméride para a deposição de Salvador Allende no Chile e para o ataque às Torres Gêmeas em Manhattan, ganhou uma conotação diferente para o Brasil.
O Supremo Tribunal Federal, o mesmo que de maneira nefasta impediu Jair de desrespeitar à Constituição, condenou o protagonista a 27 anos e 3 meses em regime fechado pelos crimes de tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado democrático de Direito.
Condenado porque conversou com militares, com agentes públicos, porque planejou com os seus amigos mais próximos a tentativa de impedir que a democracia brasileira funcionasse. Ah, esta tal de democracia. Jair precisa apelar a ela para ver se consegue ser anistiado, pois a democracia permite um tratamento digno até para aqueles que planejam destruí-la.
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A saga do herói está longe de acabar? Talvez sim, talvez não. Mas quando vejo que um dos seus filhos está fora do país, xingando o pai, discutindo com Silas Malafaia, quando penso que Jair soluça a noite inteira, que tem dificuldades para comer, quando penso que esses dias mesmo sofreu com falta de ar (sintoma dramático das primeiras vítimas do coronavírus em 2020), quando leio no jornal que ele tem um eventual diagnóstico de câncer de pele para enfrentar, quando compartilho no WhatsApp a notícia de que ele foi condenado a quase 30 anos de cadeia, quando descubro que ele tem uma indenização de R$ 1 milhão a pagar por ter feito comentários racistas, quando eu, escrevendo esse texto, vejo que o STF abriu um novo inquérito contra ele por indícios de crimes contra a administração pública na época da pandemia, não posso deixar de me perguntar: valeu a pena, Jair?