Já havia gerado alguma repercussão, no campo dos estudiosos dos direitos autorais, o litígio existente entra a Xuxa Participações (XPPA) e os detentores de direitos autoriais de personagens da “Turma do Cabralzinho”, como noticiado em veículos de grande repercussão.
Esta questão encontra-se agora submetida ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que terá a oportunidade de avaliar a liquidação do dano efetuada pelo tribunal local. O julgamento, que já era relevante, agora ganhou ainda mais importância, tendo em vista uma abordagem incomum quanto ao termo inicial dos juros legais e da correção monetária.
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Iniciado o julgamento virtual do Agravo em Recurso Especial 2.221.168/RJ, o ministro Moura Ribeiro votou no sentido de manter a inadmissão do recurso especial por ambas as partes, por força da Súmula 7, mas determinou a alteração, de ofício, do termo inicial dos juros moratórios e da correção monetária, para fixá-lo “na data da publicação [do acórdão] dos embargos de declaração” que homologou, em parte, a verba indenizatória arbitrada na perícia produzida na fase de liquidação. Antes, o tribunal fluminense havia determinado a fluência dos encargos a partir da citação.
O julgamento virtual foi interrompido por pedido de destaque, não tendo a questão, portanto, sido definida pela Terceira Turma.
Posição histórica do STJ
Historicamente, o Superior Tribunal de Justiça, em consonância com o próprio texto do Código Civil, tem adotado os seguintes parâmetros:
(a) Juros moratórios – Súmula 54/STJ: “Os juros moratórios, nas indenizações de responsabilidade extracontratual, fluem a partir do evento danoso”.
(b) Correção monetária – orientação consolidada: para danos materiais em responsabilidade extracontratual, a correção incide desde o efetivo prejuízo (Súmula 43/STJ); para danos morais, desde o arbitramento (Súmula 362/STJ).
(c) Precedentes recentes reiterados: AgInt no REsp 1.921.373/TO (2021), REsp 1.723.817/SP (2018) e REsp 2.187.452/RS (2025), no mesmo sentido.
Todavia, no recurso mencionado, surge decisão que desborda das linhas gerais traçadas pela própria corte.
Contrariedade à Súmula 54 do STJ
O caso envolve inequívoca responsabilidade civil extracontratual (uso não autorizado de criações intelectuais do autor da ação). Ao deslocar o termo inicial para o momento da liquidação da verba indenizatória, o voto destoa da Súmula 54 e da ratio decidendi de múltiplos precedentes da corte, que adota ou a data do evento danoso ou a data da citação como marco inicial da fluência dos consectários legais — mesmo quando o valor é apurado em fase de liquidação de sentença.
A jurisprudência do STJ distingue com clareza a diferença conceitual entre (i)liquidez do quantum e constituição do devedor em mora. Isto é, entende-se que os juros remuneram o período em que o lesado esteve privado de seu patrimônio, independentemente de posterior arbitramento do dano em liquidação de sentença. Em outras palavras, eventual iliquidez da quantia não interfere o marco temporal da constituição do devedor em mora – este definido em lei.
O fundamento da indenização reside nos princípios da boa-fé objetiva, da função social da responsabilidade civil e do dever de indenizar desde a prática do ilícito (art. 927, caput, do Código Civil), os quais asseguram a tutela imediata do direito subjetivo violado, ainda que a apuração do valor indenizatório dependa de liquidação posterior. A ausência de liquidez não afasta a existência da obrigação, tampouco impede a incidência dos encargos legais, especialmente em se tratando de responsabilidade extracontratual.
O voto não deixa claro o motivo pelo qual os encargos moratórios deveriam incidir somente a partir da data em que “ficou definido e esclarecido o valor devido pela XPPA [empresa devedora]”. Trata-se de critério inédito e dissociado da jurisprudência dominante do STJ, o que merecia ter sido justificado, notadamente para evitar insegurança jurídica. Afinal, o STJ reiteradamente afirma que a fluência dos juros de mora e da correção monetária independe da liquidez imediata da obrigação.
Por sua vez, a legislação civil expressamente determina que:
os juros de mora fluem a partir da citação, nos termos do art. 405 do Código Civil, e
a correção monetária incide desde a data do prejuízo, conforme decorre do art. 389 e da interpretação pacificada da Súmula 43 do STJ.
Se mantido o entendimento sufragado na decisão em exame, será formado um precedente que pode representar um ponto de inflexão na jurisprudência do STJ, com impacto significativo em inúmeras ações em curso no país que também tratam de responsabilidade extracontratual baseada em valor ilíquido.
Violação aos princípios da reparação integral e da vedação ao enriquecimento ilícito
Há, ainda, um segundo impacto. A postergação de ambos os encargos gera sub-compensação do lesado e estimula condutas infratoras, contrariando a função preventiva das indenizações em matéria de propriedade intelectual, bem como sua função pedagógica.
Tratando-se de propriedade intelectual, a celeridade e a eficácia na recomposição dos prejuízos têm caráter estruturante. Permitir que a violadora de tão relevante direito se beneficie do retardamento na liquidação e na fixação do quantum indenizatório, sem os devidos encargos legais desde a data da citação ou da prática do ilícito, representa uma postura leniente do Judiciário com condutas danosas ao titular do direito tutelado.
Nesse cenário, não apenas se viola a lógica reparatória, mas também se avaliza insegurança jurídica, comprometendo a confiança do jurisdicionado e de todo o mercado na tutela judicial efetiva.
Conclusão
A decisão diverge frontalmente da orientação consolidada do STJ e compromete a efetividade da tutela indenizatória em ilícitos extracontratuais. Em termos práticos e jurídicos, tal entendimento mina o propósito reparatório das ações indenizatórias e enfraquece o regime protetivo da propriedade intelectual, violando súmulas, princípios e dispositivos legais consolidados, sendo mais um caso no qual existe evidente desvio jurisprudencial por parte do próprio tribunal cuja incumbência é a pacificação.