A Receita Federal definiu que os valores recebidos como ressarcimento de gastos decorrentes da utilização de veículo próprio por diretores no exercício de suas funções, ainda que não classificados como auxílio de representação, estão sujeitos ao Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) e às contribuições sociais previdenciárias. Isso é o que consta na Solução de Consulta 146/2025, da Coordenação-Geral de Tributação (Cosit), publicada em 22 de agosto. Na visão de tributaristas ouvidos pelo JOTA, o entendimento contraria a jurisprudência deve aumentar a judicialização sobre o tema.
Especialistas explicam que o “ponto sensível” do instrumento da Receita está justamente no fato de ele trazer para o campo de incidência do IRPF e das contribuições previdenciárias verbas que não possuem natureza remuneratória, a exemplo do valor pago pela utilização de seu veículo próprio, bem como o jeton e o auxílio de representação. Outro ponto de preocupação levantado pelos tributaristas diz respeito ao fato de a solução de consulta possuir caráter vinculante para as autoridades administrativas, o que torna obrigatória a aplicação do entendimento adotado.
Segundo o item 27 da Solução de Consulta, os valores pagos a diretores de conselhos, ordens ou autarquias de fiscalização como ressarcimento pelo uso de veículo próprio, mesmo que não sejam classificados como auxílio de representação, são considerados remuneração e, por isso, sofrem incidência de IR e contribuições previdenciárias. Em relação ao jeton e ao auxílio de representação em valores pré-determinados, a solução de consulta afirma que eles constituem remuneração (contraprestação) em razão do trabalho prestado no exercício de cargo de dirigente, também devendo incidir as contribuições sociais previdenciárias e o IRPF.
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No ponto que toca ao IRPF, o documento da Receita também considera que são tributáveis as remunerações por trabalho prestado no exercício de cargo de diretor eleito para conselho de fiscalização do exercício de atividade profissional e quaisquer proventos ou vantagens percebidos, como verbas, dotações ou auxílios para representações ou custeio de despesas necessárias para o exercício do referido cargo. Ainda segundo a solução de consulta, a tributação “independe da denominação dos rendimentos, títulos ou direitos, bastando, para a incidência do imposto, o benefício do contribuinte por qualquer forma e a qualquer título”.
Ampliação na hipótese de incidência da contribuição previdenciária
Para Luiza Lacerda, sócia de direito tributário do Demarest, a solução de consulta da Receita Federal traz uma ampliação indevida na hipótese de incidência da contribuição previdenciária, o que pode e deve gerar autuações e aumentar o contencioso em relação à discussão. A advogada afirma que o conceito de incidência da contribuição previdenciária possui uma jurisprudência consolidada tanto na esfera administrativa quanto judicial.
Em sua maioria, Lacerda lembra que os julgados entendem que valores, indenizações e verbas pagas pelo uso do veículo próprio têm natureza de indenização e de recomposição do patrimônio do prestador de serviço e, portanto, não devem compor a base de cálculo da contribuição previdenciária ou do Imposto de Renda.
Desse modo, a advogada acredita que esse é um contencioso que será gerado a partir de uma “interpretação completamente equivocada”, trazida num instrumento vinculante para as autoridades administrativas. Além disso, ela pondera que essa medida pode ser uma tentativa da Receita Federal de ampliar sua arrecadação tributária, “estressando”, assim, os conceitos jurídicos por meio de soluções de consulta, que possuem caráter vinculante.
IR só pode incidir sobre acréscimo patrimonial
Um outro ponto que chama a atenção da especialista está no item 26 do documento, que considera tributáveis pelo IRPF os benefícios decorrentes de despesas pagas diretamente a diretor em razão de conservação, custeio e manutenção de veículos próprios. Nesse aspecto em específico, Lacerda também lembra que há jurisprudência no sentido de que essas verbas têm caráter indenizatório e, por isso, não geram a incidência do Imposto de Renda.
“E, novamente, é uma situação em que a pessoa física não está recebendo nada que aumente o seu patrimônio. Ela está simplesmente sendo reembolsada por uma diminuição do seu patrimônio para o exercício da função. E o Imposto de Renda só pode incidir sobre verbas que acresçam o patrimônio do contribuinte”, explicou a especialista.
Carlos Augusto Daniel Neto, sócio do escritório Daniel, Diniz & Branco Advocacia Tributária e Aduaneira, destaca que o tratamento do jeton como verba de natureza remuneratória, quando pago como contraprestação da participação do agente em alguma atividade – como composição de órgãos deliberativos, por exemplo, assim como o tratamento do beneficiário como segurado individual – é um “ponto já pacífico no entendimento da Receita Federal e da Procuradoria da Fazenda Nacional (PGFN)”, que segundo ele, já externou isso em pareceres.
Porém, ele avalia que o ponto crítico da solução de consulta é a inclusão no salário de contribuição os valores “comprovadamente relacionados ao ressarcimento de gastos efetuados pelo agente, com recursos próprios, para atender a demanda inerente ao exercício da função pública”. Para ele, o entendimento da Receita foi no sentido de inexistir regra que isente esses valores.
“Mas me parece que a questão é anterior, pois não se trata de montantes recebidos a título de remuneração ou benefício de qualquer ordem, mas sim a indenização de gasto realizado em função do exercício do munus público [obrigação imposta por lei, em atendimento ao poder público, que beneficia a coletividade e não pode ser recusado, exceto nos casos previstos em lei], sequer se enquadrando na hipótese de incidência do IRPF ou das contribuições previdenciárias”, afirmou.
Por outro lado, Caio César Morato, advogado do Rayes e Fagundes, considera que, ao indicar que todo valor recebido é tributável para concluir que “apenas não sofrem a incidência de tais tributos os valores expressamente isentos pela legislação”, a Receita parte de uma interpretação bastante questionável. De acordo com ele, o principal questionamento surge à medida que nem todo valor é tributável.
Jurisprudência vai no sentido contrário ao da Receita Federal
Assim, Morato ressalta que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é firme no sentido de que “não é qualquer entrada de dinheiro nos cofres de uma pessoa, seja física ou jurídica, que pode ser alcançada pelo IR, mas tão somente os acréscimos patrimoniais”. Do mesmo modo, o advogado diz que ainda há o entendimento de que nem toda verba recebida pelo empregado é remuneração pelo serviço prestado. “O reembolso de despesa não decorre de tal relação”, afirmou.
Assim como no STJ, Morato menciona que os tribunais federais têm adotado uma postura nesse sentido. Como exemplo, menciona o processo de número 0058615-42.1997.4.03.9999, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que diz que descabe a incidência da contribuição previdenciária sobre o auxílio-combustível, uma vez que se trata de verbas relativas às despesas com viagem, que são pagas com vistas ao ressarcimento de gastos decorrentes da utilização de veículo próprio pelo empregado.
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Segundo Morato, além dos tribunais, o próprio Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) já apresentou entendimento semelhante. No processo de número 10920.007425/2008-87, por exemplo, o Carf define que as verbas pagas a título de ressarcimento pela utilização de veículos particulares para o trabalho não trazem quaisquer vantagens financeiras para os empregados, mas, sim, apresentam natureza indenizatória em razão da depreciação e desgaste dos veículos e são pagos aos empregados em substituição ao fornecimento de veículos que poderia ser realizado pela empresa e, portanto, não integrando o salário-de-contribuição, não devem compor a base de cálculo das contribuições previdenciárias.
Em outro caso, sob o número 11516.004593/2007-74, o Carf entendeu que a verba denominada “auxílio combustível“ constitui ressarcimento de custos e, por força de sua natureza indenizatória, encontra-se fora ao campo de incidência do Imposto de Renda. Por essa razão, Morato considera que a posição apresentada pela Receita Federal na solução de consulta é “bastante questionável” e deve, sim, aumentar o contencioso em torno desses tributos.
Assim como Morato, Tattiana de Navarro, procuradora de Assuntos Tributários da OAB-DF e advogada tributarista no Oliveiras Navarro, também avalia que a solução de consulta vai na contramão do entendimento dos tribunais federais do país, visto que eles não fazem um recorte de diferenciação entre o contribuinte individual e o empregado para resolver o tema da incidência de contribuições previdenciárias, como fez a Receita Federal na solução de consulta.
Em relação ao IRPF, por exemplo, ela explica que as decisões dos tribunais reconhecem que o auxílio-condução ou ressarcimento pelo uso de veículo próprio “não traduz renda quando mero reembolso, por inexistir acréscimo patrimonial, o que, por lógica, não deve ter incidência de IR”. Na área previdenciária, a especialista ressalta que o Carf vem decidindo que valores pagos ao empregado a título de ressarcimento, desde que comprovado o uso de veículo próprio, não integram o salário de contribuição, por serem de natureza indenizatória. “Se não houver essa comprovação, a verba é tratada como remuneratória”, explica a advogada.
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Por isso, na opinião de Navarro, a principal contrariedade entre o entendimento da SC e o da jurisprudência é que a solução de consulta “ancora a incidência no status de contribuinte individual e no rótulo ‘vantagem do diretor’”. A jurisprudência, por sua vez, ao tratar do reembolso de veículo próprio, resolve pelo critério material e objetivo, em uma análise das disposições celetistas, ainda que de diretores. “Se for ressarcimento estrito e comprovado, não há IR nem contribuição; se não houver prova, há incidência”, ilustra.
O Índice de Segurança Jurídica e Regulatória (Insejur), criado pelo JOTA em parceria com professores do Insper para avaliar a percepção do setor privado sobre a segurança jurídica e regulatória no Brasil, mostrou que para 65% dos entrevistados entre integrantes de grandes empresas, há contradições entre legislações. Além disso, para 83%, conceitos vagos geram insegurança.
A advogada considera que, quando há entendimentos tão diferentes entre as instâncias, a segurança jurídica fica extremamente fragilizada. “Se o pagador seguir a solução de consulta e tributar reembolsos estritos de diretores, abre-se espaço para discutir a questão no Judiciário, inclusive com pedidos de restituição de indébito”, disse Navarro. Por essa razão, ela acredita que o risco de dupla exposição pode decorrer exatamente dessa dissonância de critérios.
A reportagem do JOTA procurou a Receita Federal, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.