Portaria MCID 1.012/25 traz a função digital das cidades

O Direito Urbanístico brasileiro cresceu olhando para a função social da cidade. Foi um avanço civilizatório: plano diretor, zoneamento, instrumentos de indução e salvaguarda. Só que nesta década trouxe um fato incômodo: boa parte desse edifício normativo continua dependente de mapas estáticos e relatórios episódicos, enquanto o cotidiano urbano acontece em fluxos — de pessoas, de veículos, de água, de calor — e, sobretudo, de dados.

É aqui que entra a função digital da cidade. É a dimensão informacional sem a qual a promessa da função social fica incomprovável. Uma política de habitação sem séries abertas sobre déficit, cadastros e regularização; uma política de mobilidade sem dados públicos de origem-destino; uma política ambiental sem camadas de risco e histórico de eventos extremos — sem dados tudo isso vira fé, não direito.

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A Portaria MCID 1.012, de 5 de setembro de 2025, funcionou como gatilho. Ao organizar a transformação digital urbana como serviço público contínuo de informação, o Ministério das Cidades mudou o eixo do debate: menos fetiche por planos-catálogo, mais compromisso com publicidade ativa e interpretabilidade das decisões. Não se trata de criar uma nova finalidade urbana, mas de dar lastro verificável às que já existem. Em bom português: a cidade não pode depender de “reuniões de esclarecimento”; precisa ser explicável a qualquer tempo — por dados, metadados e trilhas de decisão.

Alguns dirão que isso “informatiza” o urbanismo. Engano. O que está em jogo é juridificar aquilo que, por conforto ou conveniência, foi terceirizado ao reino da caixa-preta. Quando a portaria condiciona convênios e programas a padrões mínimos de publicação e qualidade informacional, não está pedindo luxo tecnológico. Está dizendo que sem luz não há controle: nem social, nem institucional. Quem se irrita com essa conversa em geral prefere que o debate siga opaco — mais espaço para o casuísmo e para o varejo de exceções.

Há bons sinais no país. GeoSampa em São Paulo, GeoFloripa em Florianópolis, Filipeia em João Pessoa, iniciativas locais como o Barbosa Digital Geo em Carlos Barbosa (RS). O que elas têm em comum? Tornam visível a cidade que costuma ficar escondida: hidrografia e drenagem, uso do solo e licenciamento, redes e servidões, cicatrizes da emergência climática. Quando o dado aparece, a política muda de textura: o cidadão deixa de ser plateia, o Ministério Público ganha insumo sério, o gestor passa a ser cobrado pelo tempo real — não pelo release.

Convém separar as coisas: função digital não é sinônimo de “cidade inteligente”. A retórica “smart” costuma vir acoplada a soluções proprietárias, contratos longos, dependência tecnológica. A função digital é mais chão-de-fábrica: transparência, interoperabilidade, reuso e responsividade como compromissos de governo local. Isso conversa com marcos externos, como a Executive Order 12906 (EUA) e a Diretiva INSPIRE (UE), mas tem sotaque brasileiro: municípios com orçamentos apertados, demandas gigantes e uma federação que cobra resultados.

Haverá quem levante a bandeira da privacidade. E deve levantar. A boa notícia é que a mesma régua que exige dado público exige governança de dado pessoal: mapeamento de operações, avaliação de impacto quando for o caso, limites claros para uso de geolocalização individualizante. A portaria não resolve tudo — seria uma pretensão desmedida —, mas coloca a questão no lugar certo: não se combate vigilância com escuridão; combate-se com regra, registro e responsabilização.

No fundo, o que a Portaria MCID 1.012/2025 faz é lembrar o óbvio: cidade também é serviço, e serviço se mede. Quem entrega catálogos acessíveis, camadas públicas e histórico de atualização permite que o eleitor, o controle e a academia acompanhem políticas em andamento, corrijam rota e comparem escolhas. Quem não entrega pede um voto de confiança perpétuo. Entre a cidade-serviço e a cidade-mistério, já sabemos qual produz mais litígio, mais desigualdade e mais improviso.

Falta, então, vontade política. A tecnologia necessária já está na praça; a cultura institucional, nem sempre. Secretarias e autarquias seguem reféns de fornecedores que vendem solução fechada “fim a fim” e mantêm o dado numa espécie de feudo digital.

A função digital aponta outra direção: portabilidade, reversibilidade e competição por mérito — com o município no controle do seu acervo informacional. Não é romantismo; é prudência orçamentária e proteção republicana contra aprisionamento tecnológico.

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O século 20 ensinou que a função social da cidade dá conteúdo à propriedade, à mobilidade e à moradia. O 21 começa a mostrar que, sem função digital, tudo isso perde prova, lastro e densidade. É nesse ponto que emerge o Direito Urbanístico Geográfico: não é rebranding de “cidades inteligentes”, mas tradução jurídica que impõe transparência geoinformacional, padrões abertos e auditabilidade contínua — enquanto a agenda “smart” pode existir sem prova pública e sob dependência proprietária.

O Brasil não precisa de mais slogans; precisa de regras claras para luz acesa. A Portaria MCID 1.012/2025 acendeu o interruptor. Cabe à comunidade jurídica oferecer a teoria adequada para que a função digital das cidades ordene a governança pública.

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