Batalha dos formulários: quem tem a palavra final em caso de impasse?

Nas relações de compra e venda e fornecimento de bens e serviços entre empresas (B2B), é comum o uso de cláusulas padrão. Essa prática busca eficiência, padronização e agilidade, evitando negociações individualizadas.

No entanto, quando cada parte apresenta seus próprios termos, com conteúdos diferentes e até conflitantes, fica difícil determinar quais cláusulas devem prevalecer. Esse fenômeno é conhecido como “Battle of Forms” ou “Batalha dos Formulários”. Em um caso prático, se um vendedor faz uma proposta contendo termos de contratação específicos, seja em anexo ou por hiperlink, e o comprador, ao aceitar, contrapõe seus próprios termos, ocorre a dúvida: qual deles seria aplicável?

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No Brasil, além da ausência de previsão legal específica, não há julgados que enfrentem o tema, ainda que tais instrumentos sejam largamente usados na prática empresarial.

Há, no entanto, mecanismos utilizados na prática jurídica internacional que podem servir de referências pertinentes a serem levadas em consideração pelo intérprete para definição do que seria, no direito brasileiro, a vontade das partes, como será a seguir avaliado.

Last Shot Rule: prevalência da última manifestação

A Last Shot Rule estabelece que, em trocas de documentos com cláusulas conflitantes, prevalecem os termos da última manifestação enviada antes da execução do contrato (daquele tido como ofertante), desde que não haja oposição expressa. Nesse caso, o cumprimento dos termos do instrumento (i.e. realização do pagamento, envio da mercadoria etc.) configura aceitação tácita do último documento. Pressupõe-se que a aceitação só ocorre quando feita sem alterações substanciais; havendo modificação, surge nova proposta.

No Brasil, essa teoria encontra respaldo no art. 431 do Código Civil segundo o qual a aceitação com quaisquer alterações equivale a uma nova proposta. Desse modo, cada novo documento com termos divergentes pode ser visto como uma contraoferta, sendo o contrato considerado celebrado nos termos da última proposta aceita – ainda que tacitamente, visto que o ordenamento jurídico brasileiro não exige forma específica para a manifestação de vontade (art. 107, CC) e admite que o silêncio configure anuência, quando as circunstâncias assim o indicarem (art. 111, CC).

Assim, mesmo sem essa nomenclatura, a aplicação da Last Shot Rule se apoiaria nos princípios da autonomia da vontade e da liberdade contratual (421, CC), especialmente em relações empresariais, nas quais se presume a paridade e simetria entre as partes (421, CC), o que justifica a intervenção mínima de eventual julgador nestes ajustes.

Entretanto, essa teoria poderia conduzir a soluções arbitrárias (com a definição dos termos contratuais se dando com base em quem enviou a última proposta e não na vontade comum) e incentivar o “efeito ping pong”, pela troca sucessiva de propostas sem consenso.

De todo modo, do ponto de vista prático, a Last Shot Rule oferece uma solução objetiva, conferindo segurança jurídica para as transações.

Knock-out Rule: exclusão mútua de cláusulas conflitantes

Para além desse critério, há, no direito comparado[1], países que adotam a Knock-out Rule. Essa regra propõe que, diante de divergências, cláusulas conflitantes sejam excluídas, mantendo apenas os termos compatíveis entre si. Eventuais lacunas seriam preenchidas com as normas legais incidentes ao tipo contratual.

Segundo esta corrente, o contrato é concluído quando definidos seus elementos essenciais, como objeto, preço e prazo. O início do cumprimento do acordado, a despeito da divergência das condições, é utilizado para fundamentar esta interpretação.

Essa abordagem encontra respaldo no direito brasileiro no art. 112 do CC, o qual estabelece que, na interpretação dos negócios jurídicos, deve-se buscar a intenção comum das partes em suas manifestações de vontade[1].

De acordo com a doutrina, no entanto, poderia haver o afastamento desta regra nos casos em que uma das partes tenha expressamente se oposto à inclusão dos termos padrão da outra. Nessa hipótese, tal objeção deve ser interpretada como parte fundamental da manifestação de vontade na formação do vínculo contratual.

Nesse sentido, o art. 110 do CC estabelece que, quando um dos contraentes possui conhecimento de que a vontade da outra parte é contrária ao conteúdo da manifestação de vontade, prevalece a vontade real da outra parte em detrimento dos declarados. Em outras palavras, o negócio declarado não subsiste, uma vez que não é o desejado e o destinatário da declaração tinha conhecimento disso.

Outro ponto relevante é o argumento de que a substituição de cláusulas conflitantes por normas legais supletivas pode frustrar a vontade das partes, visto que a aplicação de regras genéricas pode afastar a solução mais adequada àquela realidade contratual.

Aplicação em Request for Proposal (RFP) ou Bidding Process (BID)

Em relação a contratações realizadas por meio de RFP ou BID, entendemos que a mesma lógica deveria ser, teoricamente, observada.

Nessas contratações, a tentativa de impor termos distintos dos definidos pelo cliente pode ser vista como descumprimento das regras do certame. No entanto, se a proposta não for desclassificada e for escolhida como vencedora, mesmo contendo cláusulas divergentes, é possível sustentar que esses termos foram aceitos, especialmente se o contrato for executado sem objeções. Isso se apoia nos princípios da autonomia da vontade e da liberdade contratual, comuns em relações entre partes em condições de igualdade.

Além disso, RFPs e BIDs possuem natureza jurídica de convite à contratação[2], e não de proposta vinculante. Assim, os termos apresentados pelo proponente devem ser considerados válidos e, uma vez aceitos – inclusive por meio da execução contratual –, podem prevalecer sobre os originalmente indicados no convite. Essa lógica reforça a importância de estratégias documentais adequadas para garantir a prevalência dos termos do fornecedor.

Como fazer valer as minhas cláusulas?

A análise das principais teorias aplicáveis à resolução da Battle of Forms – notadamente a Last Shot Rule e a Knock-out Rule – revela que ambas oferecem fundamentos jurídicos e práticos que podem ser invocados à luz do ordenamento jurídico brasileiro, embora nenhuma delas tenha previsão legal expressa ou precedente específico no país.

Nos casos em que houver discussão dos termos aplicáveis entre as partes ou objeção expressa à inclusão de determinadas cláusulas padrão, há uma justificativa mais clara para afastar a Knock-out Rule e prevalecer, nesse contexto, a lógica da Last Shot Rule. De qualquer forma, o envio do último documento/manifestação, constitui etapa fundamental para buscar emplacar a aplicação dos termos desejados. Assim, sempre que possível, deve-se buscar reiterar ao final a prevalência dos seus próprios documentos.

Como aplicar essas conclusões ao caso concreto?

Com base no breve apanhado acima e nas lições de direito comparado, para aumentar a chance de prevalência dos termos gerais de contratações pretendidos, pode ser decisiva a inclusão, nas comunicações:

especialmente no corpo da proposta (e não apenas em hiperlink), das cláusulas essenciais dos termos gerais do contrato;
de referência à proposta (vendedor) ou ao pedido de compra ou aceitação (comprador), com ressalva de que a venda se baseia exclusivamente nesses termos;
de rejeição expressa aos termos da contraparte; e
do afastamento da aplicação da Knock-out Rule;

A batalha dos formulários exige atenção estratégica na gestão contratual. Embora não haja regra legal específica no Brasil, o uso consciente das teorias interpretativas e o reforço documental podem fazer a diferença em eventuais disputas.

[1] Estudo trazido por Valerio Forti traça uma análise detalhada do tema, esclarecendo as nuances da jurisprudência e demonstrando que o critério do Knock Out não é aplicado de maneira uniforme, variando de acordo com o caso concreto, trazendo a experiência de países como Alemanha, Inglaterra e França (FORTI, Valerio. La bataille des conditions générales contradictoires : étude comparative. In: Revue internationale de droit comparé. Vol. 60 N°3, 2008. pp. 729-760).

[1] Nos termos da lei, entende-se que a vontade deve ser aquela consubstanciada na declaração e não apenas no querer íntimo do declarante. Nesse contexto, adota-se a chamada teoria da confiança, segundo a qual se avalia, à luz do caso concreto, em que medida a declaração podia gerar, no destinatário, uma expectativa legítima quanto ao seu conteúdo, orientando a interpretação do que foi estipulado. Trata-se de conciliar a vontade do declarante com a confiança objetivamente criada na outra parte.

[2] “Convite a contratar” é um conceito importado do direito português. Trata-se de uma declaração negocial que não reúne todas as características para ser qualificada como proposta contratual, destinando-se a provocar propostas ou dar início a um processo de negociação. Pelo convite a contratar, o declarante mostra-se disponível para iniciar um processo de negociação, mas sem se vincular à sua conclusão ou a um conteúdo previamente determinado. Assim, da aceitação de um convite a contratar apenas uma negociação com vista a um contrato, podendo as partes desistir, ainda que vinculadas a deveres acessórios de boa-fé.

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