‘O Brasil vive uma epidemia de litigiosidade’, diz Barroso

O alto volume de ações contra o Estado brasileiro é um dos fatores que mais afetam a eficiência da administração pública e a previsibilidade das contas governamentais. O tema, que há anos mobiliza especialistas, voltou ao centro do debate no evento “Enfrentando a Litigância contra o Poder Público – Fase II”, realizado na sede do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), na sexta-feira (26), no Rio de Janeiro.

A iniciativa faz parte do acordo de cooperação técnica firmado entre o Supremo Tribunal Federal (STF), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o BNDES. Nesta etapa, foi apresentada a pesquisa conduzida pela Universidade de São Paulo (USP), que analisa a situação brasileira e propõe alternativas inspiradas em experiências internacionais.

O presidente da Suprema Corte e do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso, afirmou no encontro que um de seus principais esforços no comando do Supremo foi enfrentar a litigiosidade, ou seja, o excesso de disputas judiciais. O evento marcou sua despedida como chefe das duas instituições, já que seu mandato termina nesta segunda-feira (29). Na ocasião, o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, destacou o trabalho de Barroso: “deixou uma bela página na história do Supremo Tribunal Federal”.

Para a secretária de Altos Estudos do STF, Patrícia Perrone Campos Mello, a pesquisa “nasce de um sentimento de inconformismo” e aponta que há “um excesso de litigância contra o Poder Público”. Ela ressaltou que os gastos anuais com precatórios significam a não alocação de recursos em políticas públicas.

Segundo Patrícia, na primeira fase do estudo o objetivo foi identificar os principais temas responsáveis pelo maior volume de ações. Foram mapeados 12, sendo cinco deles responsáveis por mais de 90% da litigância: previdenciário, servidor público, tributário, saúde e trabalhista.

No mesmo painel, a diretora executiva do Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ, Gabriela Moreira de Azevedo Soares, apresentou uma ferramenta pública que auxilia na pesquisa de dados e metadados de todos os processos do Judiciário. Ela destacou a importância do monitoramento para aumentar a eficiência das políticas públicas.

A nova etapa da pesquisa, apresentada no evento, não apenas oferece um diagnóstico abrangente sobre o volume e a natureza das ações contra o Estado, mas também traz boas práticas empregadas em outras democracias.

O professor do Departamento de Ciência Política da USP (DCP-USP), Rogério Bastos Arantes, destacou que o Brasil se sobressai no cenário internacional pelo elevado grau de litigância contra o Poder Público – problema de difícil enfrentamento. “O combate à litigância predatória depende de que a Ordem dos Advogados do Brasil adote essa agenda e, além disso, de se repensar o acesso à Justiça, considerando que o Judiciário também pode ser utilizado de má-fé, com condutas abusivas”, afirmou.

O estudo da USP sugere que o Brasil pode se inspirar em práticas internacionais que privilegiam a mediação e a conciliação em disputas envolvendo o Estado. Essas alternativas tendem a reduzir os custos para o erário e o tempo de tramitação, além de ampliar a eficiência do Judiciário.

Na avaliação dos organizadores, enfrentar a litigância contra o Estado exige não apenas medidas jurídicas, mas também mudanças culturais e institucionais, com estímulo a práticas de conciliação e maior previsibilidade das decisões judiciais.

Segurança jurídica e possibilidades de atuação

Representantes do STF e do CNJ reforçaram que já existem instrumentos voltados à racionalização de processos, como a repercussão geral e os recursos repetitivos. Porém, eles ainda não bastam para conter o crescimento exponencial das ações contra entes estatais e o consequente impacto para os cofres públicos.

O diretor jurídico do BNDES, Walter Baère, defendeu que, para um país se desenvolver, é preciso garantir segurança jurídica em diferentes áreas. “A realidade brasileira apontada no estudo mostra que litigamos contra o Poder Público sete vezes mais do que a média dos países europeus. Tem alguma coisa errada. Então, o nosso desafio a partir de hoje está em aplicar soluções para esse cenário.”

Segundo o estudo, a litigância em massa impacta diretamente o funcionamento dos poderes e drena recursos públicos. Dados do CNJ indicam que o custo do Judiciário corresponde a 1,2% do PIB brasileiro. Quanto à litigiosidade, o ministro Luís Roberto Barroso destacou dois grandes gargalos: a área previdenciária e a fiscal.

No campo tributário, de acordo com dados do CNJ, ao final de 2024, 27% dos processos envolviam execuções fiscais; portanto, para o presidente do Supremo, essa deveria ser a primeira área a ser enfrentada. Segundo Barroso, os protestos da Certidão de Dívida Ativa (CDA) são mais eficientes do que o ajuizamento de execuções fiscais. “Fizemos uma resolução estabelecendo que, para ajuizar uma execução fiscal, é preciso, previamente, protestar a Certidão de Dívida Ativa”, explicou.

O ministro também destacou avanços na área trabalhista. “Mais da metade das reclamações trabalhistas ocorre na rescisão do contrato de trabalho. Por isso, fizemos uma resolução que determinou o seguinte: o acordo homologado na Justiça do Trabalho após empregado e empregador chegarem a um entendimento no ato da rescisão, ambos assistidos por seus advogados, impede o ajuizamento de uma ação trabalhista.”

Durante o estudo, Patrícia Perrone observou que os sistemas de dados das procuradorias e das advocacias públicas “eram predominantemente voltados à distribuição interna em cada instituição, a partir de uma divisão equânime entre os responsáveis pelos processos”. Segundo ela, esses sistemas não eram customizados para identificar a origem da litigância.

“Uma grande demanda para enfrentarmos o excesso de ações é ter um sistema de dados customizado, capaz de compreender de onde vem a litigância e de desenvolver ferramentas estratégicas para combatê-la”, afirmou.

Na mesma linha, o procurador federal da Advocacia-Geral da União (AGU), Sebastião Faustino de Paula, ressaltou que três diretrizes já foram adotadas no contexto deste trabalho: “a permanente busca pela efetivação de direitos, o intransigente combate à litigância predatória – que é um dos nossos maiores problemas – e, também, o respeito à segurança jurídica”.

Generated by Feedzy