Nos últimos meses, o tema da anistia voltou ao centro do debate nacional, não apenas pelo avanço de projetos de lei, mas também pela divulgação de vias interpretativas voltadas a demarcar seus contornos. Uma observação lateral, constante de voto proferido em julgamento do Supremo Tribunal Federal, bastou para suscitar a controvérsia.
Nela, se sugeria que os crimes contra o Estado democrático de Direito não seriam passíveis de anistia. Trata-se, vale observar, de solução construída a partir do alargamento de restrição constitucional, mediante leitura que estende as fronteiras da Constituição para além do que nela foi textualmente estatuído.
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A questão, no entanto, não é nova. Já na Assembleia Constituinte, a anistia se mostrou tema sensível e carregado de simbolismo, fruto das tensões entre justiça, pacificação e política. Mobilizou, à época, discursos e manifestações, nos quais a memória recente sobre as agruras do regime anterior se entrelaçava ao desejo de uma democracia que aprendesse com as feridas do passado. Fazia-se indispensável conjugar a necessidade de responsabilização com as exigências de reconciliação nacional.
O espírito que pautou a decisão adotada sobre o tema pode ser encontrado no discurso de vários constituintes. Jutahy Magalhães, por exemplo, asseverou ter se “manifestado reiteradamente contra as propostas que buscam impedir a concessão de anistia, salvo em se tratando do crime de tortura”.
Na mesma linha, Mário Covas ponderou que, se não fosse possível “compreender que um crime, por mais forte que seja, pode criar circunstâncias para as quais o perdão possa ser considerado, então melhor seria que desqualificássemos o criminoso e o condenássemos à morte”.
Corroborando essa visão, Nelson Carneiro declarou “não acreditar que se deva impedir o Estado de usar a faculdade da anistia, por mais hediondo que seja o crime”. Preponderava a coomprensão de que a vedação à anistia deveria ser uma medida de caráter excepcional, aplicável somente a delitos específicos e previamente delimitados.
Foi sob essa inspiração que o texto constitucional aprovado definiu os limites aplicáveis à anistia. Segundo estabeleceu o art. 5º, XLIII, são inafiançáveis e insuscetíveis de anistia os crimes de tortura, tráfico de entorpecentes, terrorismo e aqueles definidos como hediondos. A devida compreensão sobre a questão requer, outrossim, a confrontação de tal solução normativa com o inciso subsequente. Estatuiu-se no art. 5º, XLIV, por seu turno, que são imprescritíveis e inafiançáveis os crimes cometidos por grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado democrático.
A diferença é clara: em ambos os casos há inafiançabilidade, mas apenas no inciso XLIII positivou-se a vedação à anistia. Qualquer tentativa de aplicar extensivamente essa vedação aos crimes referidos no inciso XLIV esbarra na própria decisão do constituinte.
A esse propósito, cumpre recordar que, na sessão de 22 de fevereiro de 1988, a Assembleia Nacional Constituinte aprovou o Destaque 2.184, de autoria do deputado Carlos Alberto Caó. A proposição foi colocada em votação pelo presidente Ulysses Guimarães, que a apresentou nos seguintes termos:
Vem à Mesa e vai à publicação o seguinte requerimento:
REQUERIMENTO DE DESTAQUE nº 2.184
Senhor Presidente,
Requeiro, nos termos do art. 7º da Resolução nº 3, de 1988, destaque para aprovação da Emenda no 2P 00655-8 do Constituinte Carlos Alberto Caó, retirada da emenda a expressão “e insusceptível do benefício da anistia”.
Passa-se ao Destaque nº 2.184, à Emenda nº 655. O autor é o Constituinte Carlos Alberto Caó. A redação é a seguinte:
“Constitui crime inafiançável, imprescritível…”
Exa. retira a referência “insuscetível do benefício da anistia” e continua:
“…a ação de grupos armados, civis e militares, contra a ordem constitucional e o estado democrático.”
Exa. o autor da proposição, está inscrito para defendê-la.
(DIÁRIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE, de 23 de fevereiro de 1988, p. 212.)
Com a aprovação da proposição — “para surpresa de alguns constituintes”, como noticiou a imprensa na época — a Assembleia Nacional Constituinte tomou a decisão inequívoca de suprimir a vedação de anistia aos crimes contra a ordem constitucional e o Estado democrático.
O texto originalmente apresentado continha tal restrição, mas ela foi deliberadamente afastada por essa votação do plenário. Em outras palavras, a concessão de anistia para tais condutas foi confiada, pelos constituintes, ao juízo político dos representantes eleitos pelo povo, a ser exercido mediante devido processo legislativo.
A regra geral, portanto, é a de que qualquer crime pode ser objeto de anistia. Apenas os delitos expressamente enumerados no inciso XLIII da Constituição escapam, como exceções, a essa diretriz. Esforços interpretativos que busquem estender ao inciso XLIV uma limitação que nele não se encontra ameaçam desfigurar a opção consciente do constituinte.
O texto constitucional contemplou delicada fórmula de equilíbrio: de um lado, vedou a anistia a crimes de extrema gravidade que atentam contra a dignidade humana; de outro, preservou a possibilidade de diálogo político mesmo diante de ofensas graves à ordem institucional.
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A vida democrática deve ser guiada, sobretudo, pela sobriedade e pela tolerância, virtudes que permitem reconhecer e acolher diferenças sem que delas surjam ressentimentos insuperáveis. O rancor, afinal, raramente oferece bons conselhos. A anistia, nesse horizonte, não significa apagar a memória, mas sim instrumento de transição, de descompressão, de correção e de abertura ao futuro.
Se os constituintes escolheram preservar esse canal de distensão política, seria temerário — e, por isso mesmo, arriscado — reconfigurá-lo à margem da vontade expressa no momento do pacto constitucional. Fechar a porta que o constituinte deliberadamente manteve aberta implicaria negar a sabedoria do compromisso que sustenta a própria democracia.