Municípios no vermelho

Os municípios brasileiros vivem um cenário fiscal cada vez mais preocupante, marcado por aumento descontrolado de gastos com pessoal, forte dependência de transferências da União e dos estados e, mais recentemente, o risco de agravamento desse quadro com a aprovação da PEC dos Precatórios.

Um estudo recente da corretora Warren Investimentos mostra que, entre 2010 e 2024, a arrecadação total dos municípios passou de 7,9% para 10,6% do PIB, enquanto as despesas cresceram de 7,8% para 10,9% do PIB. O resultado é um déficit primário de 0,3% do PIB apenas em 2024, o segundo ano consecutivo em que os municípios gastaram mais do que arrecadaram, mesmo sem considerar o pagamento de juros da dívida pública.

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Ainda mais preocupante é o fato de que cerca de 70% da receita municipal vem hoje de transferências de estados e, principalmente, da União, o que revela uma autonomia fiscal extremamente limitada e uma dependência crescente de repasses que, muitas vezes, são instáveis ou politicamente condicionados.

Boa parte desse desequilíbrio decorre do avanço das despesas com pessoal, que ocupam espaço orçamentário de maneira inflexível e acabam por reduzir drasticamente a capacidade de investimento das prefeituras em áreas como infraestrutura, saúde e educação. Em muitos casos, essas despesas ultrapassam os limites estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que define o máximo de 54% da receita corrente líquida para gastos com pessoal no caso dos municípios.

O problema é que, mesmo onde esses limites ainda não foram formalmente extrapolados, a pressão do funcionalismo, somada à concessão de reajustes ou à criação de cargos sem compensação financeira, vai corroendo aos poucos a margem de manobra fiscal. Isso obriga prefeitos e secretários a fazerem escolhas difíceis: atrasar fornecedores, adiar obras, reduzir serviços essenciais, acumular restos a pagar ou, em situações extremas, a atrasar o pagamento da própria folha.

A LRF foi criada justamente para evitar esse tipo de cenário. Ela impõe limites, exige transparência e define mecanismos de correção quando as contas públicas saem do controle. No entanto, o cumprimento da lei exige compromisso político, capacidade técnica e, acima de tudo, responsabilidade com o interesse público. Quando esses elementos falham, o desequilíbrio se torna estrutural, gerando desconfiança, judicializações e ineficiência.

É nesse contexto que a recente aprovação da PEC dos Precatórios acende um sinal de alerta. A nova emenda constitucional impõe um teto para o pagamento de precatórios por estados e municípios, que poderá variar entre 1% e 5% da receita corrente líquida, além de permitir prazos alongados para a quitação dessas dívidas judiciais. A justificativa é que a medida dará fôlego aos entes federativos para reequilibrar suas contas. No entanto, os efeitos colaterais podem ser graves.

É preciso lembrar ainda que durante o período da pandemia, o Congresso Nacional editou legislação que paralisava, ainda que provisoriamente, o aumento de gastos de pessoal. Esse tipo de medida, embora justificado pelo contexto emergencial, teve efeito colateral de represar pressões que agora retornam com força, pressionando os orçamentos locais já fragilizados.

A situação é confirmada por dados recentes do Tesouro Nacional: em 2024, 2.825 prefeituras, o equivalente a 52% do total do país, apresentaram piora no resultado primário em relação ao ano anterior. Destas, 823 já estavam no vermelho e ampliaram o déficit, 670 tiveram queda no superávit e 1.332 saíram de uma posição positiva em 2023 para encerrar 2024 com rombo fiscal. Entre as afetadas estão 19 capitais, evidenciando que o problema não se limita a pequenas cidades, mas atinge também grandes centros urbanos.

Não há dúvidas de que o problema é estrutural. Para romper esse ciclo, não basta apenas cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal e buscar maior eficiência nos gastos: é imprescindível avançar em uma reforma administrativa que modernize a gestão pública, reduza distorções nas carreiras, estabeleça regras mais claras para a progressão salarial e permita que os municípios ajustem seus quadros de pessoal de acordo com sua realidade fiscal. Sem essa mudança, qualquer ajuste será paliativo, e a qualidade dos serviços oferecidos à população seguirá comprometida.

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