Quando a demissão vira manchete

O mês de setembro foi marcado por uma notícia de grande repercussão: o banco Itaú, o mais lucrativo do Brasil, anunciou a demissão de cerca de mil funcionários que atuavam em regime de trabalho remoto.

Em nota, o banco justificou os cortes como resultado de uma “revisão criteriosa”, destacando a quebra de confiança como fator determinante. A publicização dessas razões gerou forte repercussão, levantando debates sobre os limites entre a transparência corporativa e a proteção da reputação profissional dos trabalhadores desligados.

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Os desligamentos teriam como fundamento registros de inatividade captados nos computadores corporativos. Em alguns casos, os sistemas teriam apontado períodos de quatro horas ou mais sem qualquer interação registrada, o que foi interpretado pela instituição como indício de ociosidade durante o expediente.

A leitura do banco é clara: a possível ociosidade evidencia quebra da confiança necessária na relação entre empregado e empregador. Assim, a narrativa oficial coloca o foco no dever de transparência e responsabilidade dos trabalhadores no regime remoto, vinculando a permanência no quadro de pessoal ao alinhamento com a cultura de confiança cultivada pela instituição.

Logo após o anúncio, surgiram nas redes sociais inúmeros depoimentos de ex-funcionários que contestam a versão apresentada pelo banco.

Em um exemplo, o ex empregado afirma que usava seu computador pessoal para o trabalho, já que os notebooks fornecidos pelo Itaú seriam excessivamente lentos, dificultando a produtividade. Nessas situações, o sistema interno poderia indicar ausência de atividade, quando, na prática, o empregado estava plenamente engajado em suas funções.

Outro ponto destacado por diversos desligados é a contradição entre as acusações de ociosidade e o reconhecimento de desempenho que haviam recebido pouco tempo antes. Há relatos de trabalhadores que foram premiados ou elogiados formalmente por sua performance e, ainda assim, acabaram incluídos no corte sob a justificativa de inatividade.

Outro aspecto que amplia a controvérsia não está apenas nas demissões em si, mas na forma como foram comunicadas. Ao divulgar publicamente que os desligamentos decorreram de “padrões incompatíveis com a confiança”, o banco ultrapassa a esfera da gestão interna e projeta sobre os trabalhadores uma marca que pode acompanhá-los em futuras oportunidades profissionais.

A imagem de “ociosidade” ou de “quebra de confiança” reverbera no mercado e pode comprometer a reputação individual de pessoas.

A questão que se impõe é: até que ponto uma empresa pode dar publicidade às razões de seus desligamentos sem violar direitos fundamentais à honra e à imagem de seus empregados?

Há um dilema evidente entre a transparência corporativa, necessária para preservar a credibilidade da instituição, e a preservação da dignidade pessoal do trabalhador, que não deveria ser exposto a um julgamento público.

Nesse conflito de interesses, a linha que separa a defesa da marca do banco e a proteção da reputação do indivíduo mostra-se tênue e desafiadora.

A prática de dar publicidade a desligamentos não é inédita no ambiente corporativo. Em diferentes setores, executivos de alto escalão já foram afastados sob intensa exposição midiática.

Um exemplo recente foi o do CEO da Nestlé, que deixou o cargo após a revelação de um relacionamento amoroso considerado incompatível com sua posição. Nesses casos, a notoriedade do cargo, somada à relevância da empresa, torna quase inevitável a ampla cobertura e o escrutínio público, o que acaba transformando a demissão em uma espécie de penalidade social.

Entretanto, há uma diferença substancial quando se observa a situação do Itaú. Aqui, os desligamentos não envolvem figuras públicas ou altos executivos, mas empregados comuns, sem o mesmo poder de influência ou acesso a canais de defesa.

A assimetria é clara: a alta liderança tem potencial para justificar-se ou reconstituir sua imagem profissional, bem como um colchão de patrimônio que suporta o processo de recolocação. Por sua vez, trabalhadores de níveis operacionais ficam limitados a manifestações isoladas em redes sociais, incapazes de equilibrar a narrativa construída por uma instituição do porte de um dos maiores bancos da América Latina, e seu maior patrimônio é a própria força de trabalho.

A decisão de tornar públicas as razões das demissões também abre espaço para questionamentos jurídicos. Ao associar desligamentos a condutas de desconfiança ou ociosidade, a empresa se expõe ao risco de ações por danos morais, já que a exposição pode afetar diretamente a honra e a imagem dos trabalhadores. A segurança jurídica, portanto, depende não apenas da legitimidade dos critérios adotados internamente, mas também da forma como são comunicados ao público.

O Itaú pode enfrentar, ainda, um alto custo interno decorrente dessa demissão em massa.

Um estudo da Universidade Harvard publicado em 2024 revela que demissões afetam o engajamento, moral e lealdade dos funcionários sobreviventes, com impactos duradouros que podem fragilizar a confiança nas relações laborais: em média, dentre as empresas que foram objeto da pesquisa, a declaração de confiança nas empresas caiu 16,9 pontos percentuais entre os empregados. A crença em oportunidades de carreira caiu 12,1 pontos percentuais. E a confiança na liderança caiu 10,5 pontos percentuais.

Garantir processos internos robustos, com apuração transparente e canais de defesa para os trabalhadores, é essencial para legitimar desligamentos e minimizar riscos jurídicos, como ações por danos morais.

No entanto, mais do que conduzir demissões, as empresas devem comunicar suas decisões com cautela, evitando que a tentativa de preservação da reputação institucional comprometa a dignidade dos indivíduos.

No caso do Itaú, a publicização de condutas como “inatividade” projeta estigmas que dificultam a recolocação profissional, já que potenciais empregadores podem interpretar tais demissões como sinais de comportamento inadequado.

O risco de prejuízo prolongado é real. Uma pesquisa publicada em maio de 2025 pelo Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social mostra que os trabalhadores demitidos mediante demissões em massa enfrentam perdas salariais persistentes e têm menor probabilidade de se recolocar no mercado formal.

Os resultados mostram que, dois anos depois de serem demitidos em cortes coletivos, esses trabalhadores têm quase 24 pontos percentuais a menos de chance de conseguir um emprego formal em comparação com colegas de empresas que não passaram por demissões em massa. O estudo também aponta que, mesmo quando conseguem se recolocar, os trabalhadores sofrem perdas salariais duradouras. No primeiro ano após a demissão, quem consegue um novo emprego ganha, em média, 7,5% menos que colegas que não passaram pelo corte.

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Essa prática reverbera além da esfera jurídica, impactando o mercado de trabalho como um todo. A rotulação de funcionários como “desonestos” ou “inativos” sem direito ao contraditório alimenta inseguranças e fragiliza a confiança que sustenta as relações laborais.

Para evitar injustiças e preservar a estabilidade do mercado, empresas devem adotar políticas de comunicação éticas, equilibrando transparência com respeito à reputação individual.

O caso do Itaú serve como alerta: a gestão de crises trabalhistas exige não apenas rigor técnico, mas também sensibilidade humana, para que a busca por credibilidade institucional não resulte em danos irreparáveis aos trabalhadores e ao próprio ecossistema profissional.

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