O Brasil vive, hoje, a convivência de duas visões sobre desenvolvimento: uma dos anos 70 que vê na expansão da fronteira agrícola uma solução econômica, e outra que entende ser preciso manter a floresta em pé para proteger a própria agricultura. A reflexão é de André Guimarães, diretor-executivo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e enviado especial para a sociedade civil da COP30, e captura um dos maiores paradoxos do agronegócio brasileiro: como o setor que se tornou potência global desmatando precisa das florestas para continuar produzindo.
Engenheiro agrônomo que há mais de duas décadas atua na interface entre pesquisa e política pública, Guimarães testemunhou a transformação de conceitos científicos em políticas globais. Foi assim com o REDD+, mecanismo para remunerar florestas em pé desenvolvido pela sociedade civil — incluindo IPAM, Imazon e outras organizações — e que hoje integra oficialmente a agenda climática da ONU.
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Em entrevista, Guimarães revela os bastidores da preparação para Belém, analisa como a sociedade civil brasileira influencia as negociações globais e explica por que acredita que o Brasil está no momento certo para liderar a transição de um modelo de desenvolvimento “ultrapassado” para uma nova economia que reconhece a interdependência entre produção e conservação.
Como você avalia as expectativas da sociedade civil para a COP 30, especialmente após três COPs consecutivas em países com regimes autoritários?
É importante dizer que a sociedade civil acompanha e influencia as decisões das COPs desde sempre. Diferente do setor privado, que começou a se envolver há cerca de dez COPs atrás, mais ou menos, depois do Acordo de Paris, ou dos governos subnacionais, que entraram mais recentemente, a sociedade civil está presente desde o primeiro dia. Na Rio92 já houve a Cúpula dos Povos e movimentos organizados em paralelo à conferência oficial. Por isso há uma grande expectativa em relação a Belém. Foram três COPs em sequência onde manifestações públicas foram limitadas, onde muitos protestos e posicionamentos da sociedade civil não puderam ser feitos pelas características dos países anfitriões.
O que torna Belém especial para a sociedade civil?
Estamos agora no Brasil, na Amazônia, em Belém do Pará — tudo isso são atrativos. O Brasil é uma liderança global na agenda climática, a Amazônia é um grande chamariz e, ao mesmo tempo, um agente importante na equação climática do planeta. Belém é uma cidade emblemática. Certamente vamos ter uma presença muito forte da sociedade civil. Vamos ver manifestações de rua, protestos de jovens, grupos minoritários, indígenas se manifestando, do Brasil e de fora. Essa COP não vai ser diferente das outras: teremos queixas, mas o mais importante será a participação efetiva da sociedade.
A sociedade civil de fato consegue influenciar as decisões das COPs?
Sim, as manifestações da sociedade têm potencial de influenciar decisões no mais alto nível. Vou dar um exemplo concreto: há quase 20 anos, cientistas do IPAM e outras organizações, como o Imazon, desenvolveram um racional científico para remunerar florestas em pé. Esse conceito, desenvolvido pela sociedade civil, hoje é aceito pelas Nações Unidas como o REDD+, a redução de emissões pelo desmatamento e degradação.
O Brasil historicamente tem protagonizado essas influências. O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) foi uma proposta brasileira que viabilizou o Protocolo de Quioto. Na COP de Copenhague, quando a expectativa com o Obama foi frustrada, a presença do presidente Lula foi extremamente representativa, ele instigou as nações a continuarem atuando mesmo com dificuldades políticas.
Como os observadores da sociedade civil atuam durante as negociações oficiais?
A delegação brasileira tem o hábito de fazer conversas no final do dia ou após dois dias de negociação, convidando observadores para informar como as coisas estão acontecendo e ouvir as prioridades da sociedade civil. Esse é um hábito brasileiro, imagino que outras delegações façam algo similar. Aquele é um momento de interação e influência. Dentro da negociação em si, os observadores não podem se manifestar, apenas observam, analisam, saem e conversam com organizações e parceiros. As manifestações são apenas das partes, que são os governos nacionais. A sociedade civil brasileira é extremamente ativa globalmente. Essa rede de articulações gera pressões mundiais. Tanto a nossa sociedade civil, quanto o governo brasileiro são vistos como líderes nessa questão.
Estamos vivendo um momento de tensão entre diferentes visões sobre desenvolvimento. Como você vê essa disputa, especialmente na agricultura?
Estamos em um momento de transição global onde diferentes visões coexistem. No caso do agro brasileiro, temos parte do setor que ainda mantém uma visão dos anos 70 e 80, patrimonialista, de expansão permanente da fronteira, de conversão de mais áreas para agricultura. Essa visão fez sentido naquele período. Precisávamos ampliar exportações e produção, o mundo demandava mais alimentos, era necessário abrir a fronteira agrícola. O processo foi importante para equilibrar oferta e demanda global. O caso da China é emblemático, ela conseguiu tirar centenas de milhões de pessoas da pobreza, e o agro brasileiro foi crucial nesse processo.
Mas essa lógica ainda se sustenta hoje?
Hoje temos mais ciência, mais informações que exigem um ajuste. Nos últimos 50 anos, o Brasil saiu de importador para um dos maiores produtores e exportadores de commodities agrícolas do mundo. Isso aconteceu graças à Embrapa, ao Plano Safra, aos incentivos fiscais, é uma transformação espetacular. Mas essa transformação custou 50% do Cerrado e 20% da Amazônia. O modelo expansionista que nos trouxe até aqui precisa ser revisado porque hoje sabemos algo que não sabíamos há 50 anos: a agricultura tropical tem uma relação de simbiose com a natureza.
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Qual é essa relação de simbiose?
Se somos um grande player na produção de alimentos é porque temos a Amazônia, que rega e distribui água pelo sul da própria Amazônia, pelo Cerrado, pela Mata Atlântica, estendendo até Bolívia, Paraguai e Argentina. A umidade da Amazônia é o que faz o sucesso da agricultura do Cone Sul. Hoje temos pleno entendimento: cada árvore que tiro da Amazônia são 1.000 litros a menos de água bombeados para a atmosfera. Consequentemente, menos chuva e pior distribuição hídrica.
Então qual é o novo paradigma?
No passado, o paradigma era: “tenho que tirar a floresta para fazer agricultura”. O paradigma agora é: “quanto e onde tenho que deixar a floresta para proteger minha agricultura”. No Brasil, 90% da produção agropecuária não é irrigada, ela depende de ciclos naturais de chuva determinados pelas florestas. Em última instância, proteger a floresta é proteger o agro brasileiro. Esse é o grande paradigma que temos que encarar como sociedade.
Existe resistência a essa mudança?
Existem embates, sim. Você vê polarização no Congresso, visões antagônicas dentro do próprio governo sobre questões ambientais e lógicas de desenvolvimento. São processos naturais em um país democrático como o Brasil. Mas temos que discutir com o pé no chão. O pé no chão diz que precisamos mudar. Não dá para continuar aplicando protocolos da Revolução Verde dos anos 50 e 60 se sabemos que precisamos da natureza para proteger a produção, que precisamos da vegetação nativa para circular umidade e estabilizar chuvas.
Os produtores estão percebendo essa necessidade?
O fazendeiro é o primeiro a entender a sua dependência de fenômenos climáticos e o primeiro a perceber que algo mudou. Quando quebra a safra um ano, diz que é acaso. Dois anos, azar. Três, quatro anos seguidos, aí acendem luzes amarelas e vermelhas. Não temos quebras generalizadas — paradoxalmente, este ano o Brasil produziu mais que o anterior. Mas localizadamente já vemos movimentos de redução de investimentos na segunda safra, indicativos de incerteza sobre a chegada das chuvas.
E como eles estão reagindo?
Essas pessoas estão buscando alternativas agronômicas, novas variedades, técnicas, protocolos para adaptar a produção. É um movimento ainda silencioso, mas que certamente se acentuará: a adaptação da agricultura tropical ao aquecimento global. Vejo um movimento crescente no entendimento, na aceitação e na aplicação de novas metodologias. Grandes produtores, grupos empresariais que entendem melhor o cenário mundial, já promovem adaptações, investem em novos sistemas produtivos, participam de pesquisas sobre riscos e soluções.
O que a COP30 pode representar para o futuro do Brasil?
Ela consolida nossa liderança na agenda climática global num momento em que essa agenda ganha nova proporção. Houve alguns momentos cruciais na história ambiental planetária: Rio 92, a frustração de Copenhague, Paris e agora Belém. Na metade ou mais desses momentos, o Brasil foi protagonista. Ao consolidar essa liderança, o Brasil se torna atrativo para investimentos, ganha soft power e interesse de outros países. Turismo, exportações, agregação de valor, investimentos externos — tudo ganha. É um conjunto de benefícios tangíveis difíceis de mensurar completamente.
Que tipo de investimentos podem vir?
Estamos falando de um planeta em aquecimento que precisa rever processos, e isso exige investimentos. A presidência da COP aposta na construção do TFF — o fundo tropical para florestas tropicais — que valoriza florestas em pé e países que as mantêm. Você vê o BNDES criando instrumentos para restauração florestal, o Ecoinvest do governo federal, o Plano Safra incorporando critérios climáticos e de cumprimento do código florestal. Esse tipo de mecanismo caminha para uma nova economia, uma nova forma das atividades humanas se relacionarem com a natureza.
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Qual é a dimensão geopolítica dessa COP?
O Brasil recoloca o debate nos trilhos, traz de volta a agenda sul-sul. As últimas COPs aconteceram no hemisfério norte. Agora teremos Brasil, possivelmente Austrália, depois eventualmente África. Ou seja, dois a três anos seguidos de visibilidade para o sul global. Tivemos G20 no ano passado, agora a África do Sul lidera o G20, tivemos o BRICS que “sacudiu” o mundo. Tudo isso tem o Brasil envolvido. Os interesses e a credibilidade brasileira crescem neste momento estratégico planetário.
Qual é o tamanho da responsabilidade do Brasil nesta COP?
Talvez seja a COP mais importante de todas porque é um divisor de águas. Dali precisamos encaminhar soluções e ver a curva de emissões de carbono inclinando para baixo. Esse é o tamanho da ambição e da expectativa sobre nossos ombros. Recentemente participei de uma reunião de ministros de meio ambiente da América Latina no México, com representantes de quase 30 países. Foi claramente uma reunião de apoio à liderança brasileira na COP. Vi e escutei daqueles ministros a expectativa e a confiança que depositam no Brasil.
Temos condições de entregar muito das expectativas — não tudo, porque não existe perfeição nessa agenda. Mas podemos mostrar que é possível produzir alimentos sem desmatar, reverter desmatamento com restauração florestal, mitigar impactos climáticos através da conservação.
É um momento ímpar para o Brasil e para a agenda climática global. A COP30 é um momento importante de uma jornada que começou há décadas e terá muitas décadas pela frente, exigindo de todos nós muita atenção, compromisso e trabalho.