Os juízes do Supremo Tribunal Federal fizeram questão de destacar, por ocasião da ADI 7.265, que este se tratava de um hard case, na concepção de Cass Sustein em One Case at a Time. Deveras, não é tarefa fácil estabelecer parâmetros para organizar o acesso a tratamentos de saúde diversos daqueles aprovados e referendados pela autoridade – no caso, por meio do rol da ANS.
Uma decisão que estabelece limites à cognição judicial no acesso a bens sanitários pode prejudicar pacientes, gente que precisa, pessoas que carecem de saúde e não tem meios para provê-la como desejariam. Por outro lado, operadoras privadas de saúde – como toda e qualquer empresa ou, mesmo, atividade – precisam ter a exata dimensão de seus riscos (até por obrigação regulatória, frise-se), sendo difícil justificar que sejam judicialmente obrigadas a custear tratamentos não contemplados no rol da ANS. Por isso, o caso que se colocou no plenário do STF na última semana estava longe de ser simples e raso.
Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor
Quando defendi minha tese em 2015 (sobre aspectos processuais da intervenção do Judiciário nas políticas públicas de saúde), a judicialização da saúde já era um problema antigo. Contudo, foi apenas em 2022 que o caso chegou ao STJ, que, por maioria de votos da 2ª Seção, entendeu que o rol da ANS era taxativo, comportando exceções desde que inexistentes substitutos terapêuticos previstos no rol ou esgotados os procedimentos de incorporação do tratamento desejado na lista da ANS.
O entendimento do STJ foi insuficiente. Na sequência, editou-se a Lei 14.454/2022, que arrefeceu as exigências impostas no julgado do STJ para admitir a autorização de cobertura, pela operadora, de tratamento extra rol indicado por médico assistente desde que existisse comprovação da eficácia científica ou recomendação da Conitec ou, ainda, de órgão de renome internacional que tenha indicado o tratamento para seus cidadãos. No jogo da Separação de Poderes, a lei prevaleceu ao caso julgado.
O contra-ataque ocorreu por meio da ADI 7.265, que questionava, precisamente, a constitucionalidade da alteração promovida pela Lei 14.454/2022. Foi esta ação que promoveu, por maioria de votos, pendente a formalização do acórdão, as teses que seguirão. É impossível não se traçar um paralelo entre tais teses e aquelas definidas pelo STJ em 2022. São elas (seguidas por comentários):
É constitucional a imposição legal de cobertura de tratamentos ou procedimentos fora do rol da ANS, desde que preenchidos os parâmetros técnicos e jurídicos fixados nesta decisão;
O STF abre a porta para coberturas de tratamentos fora do rol da ANS, mas apenas como exceção. A maioria parte do pressuposto que a ANS possui competência precípua para definir sua lista, que, a propósito, outorga transparência e previsibilidade não apenas para as operadoras, mas para todo o sistema de saúde, que não é único apenas por força constitucional, mas, também, econômica e social.
Condiciona a adoção da exceção à obediência dos parâmetros que seguem na decisão – o item 2 endereçado principalmente às operadoras; o item 3, aos juízes. Fixa a necessidade de controle de risco, com a ideia de agravamento agudo com determinações judiciais que se socorrem de parcas provas (ou daquilo que denominei argumento linear na minha tese que virou livro)[1], o que vem acontecendo desde, pelo menos, a Constituição de 1988.
Na verdade, o argumento linear parece justificar a tônica da decisão do STF. Com efeito, ele se baseia na relação juridicamente causal consubstanciada na retilínea sentença lógica “a Constituição determina a obrigação do provimento de saúde a todos. A operadora não está provendo saúde. Logo, deve ser obrigada a fazê-lo”. Os fatores emocionais envolvidos em decisões dessa espécie – já que juízes também são gente – agravam o quadro.
Diversas sentenças ao longo dos anos se justificaram por essa tônica, sem considerar, dentre outras coisas, que, sendo o sistema único, aquele que acessa o Judiciário obtém uma vantagem quanto aos que não conseguem ultrapassar tais obstáculos, acentuando desigualdades que políticas planejadas e estruturadas pelo Poder Público seriam, em tese, mais equitativas.
Não pode ser visto com normalidade a explosão de ações judiciais reivindicando saúde, tanto do público quanto do privado. Antes, trata-se de patologia sistêmica, um escorredouro que precisa ser estancando, não para privar, mas para assegurar direitos de todos os usuários do SUS.
Nesse sentido, anda bem a decisão do STF ao fixar, primeiro, que o rol da ANS não é qualquer coisa que pode ser desconsiderado; segundo, que seu elastecimento precisa se basear em parâmetros objetivos, como se verá a seguir.
Em caso de tratamento ou procedimento não previsto no rol da ANS, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos: (i) prescrição por médico ou odontólogo assistente habilitado; (ii) inexistência de negativa expressa da ANS ou de pendência de análise em proposta de atualização do rol; (iii) ausência de alternativa terapêutica adequada para a condição do paciente no rol de procedimentos da ANS; (iv) comprovação de eficácia e segurança do tratamento à luz da medicina baseada em evidências de alto grau ou ATS, necessariamente respaldadas por evidências científicas de alto nível; e (v) existência de registro na Anvisa.
São cinco pressupostos cumulativos que autorizam a operadora a arcar com tratamentos extra rol. A prescrição médica ou odontóloga é essencial, afinal, o médico ou dentista são as autoridades que conhecem seus pacientes e que devem ter sua expertise respeitada. Contudo, existem fatores que preponderam.
Primeiro, parece evidente que não pode ser autorizado tratamento expressamente negado pela ANS – ou seja, negado após avaliado e constatado que não possui eficácia ou segurança comprovados. Este limite não apenas privilegia a autoridade da ANS, mas ressalta que não pode haver ambiguidades e contradições entre o que entende a agência e o que entende o juiz, prevalecendo àquela a este.
Ainda, se a análise do tratamento ainda está pendente na ANS, também se coloca o freio ao deferimento do tratamento fora do rol da ANS – novamente, aí está o intento de prestigiar, como deve ser, a expertise da ANS.
Em segundo lugar, prestigiando o rol da ANS, não haverá autorização de tratamento fora dele se houver alternativa terapeuticamente adequada para o paciente. Faz sentido. Apenas se a ANS não for eficiente a ponto de não prever tratamento seguro e eficaz, dentro das demais condições, em sua lista, aí terá lugar o deferimento. Tal comprovação, afinal – e aí é o pressuposto subsequente – deve se basear em evidências científicas de alto nível, aptas a respaldar o tratamento e garantir que ele cumpra seu papel não submetendo o paciente a riscos insuportáveis.
Por fim, o tratamento fora do rol será concedido se ele for registrado na Anvisa, quando for o caso. Medicamentos, drogas, insumos e outros dependem de registro para industrialização, exposição à venda e entrega ao consumo (artigo 12 da Lei 6.360/76). Também, se ao SUS é vedado dispensar medicamentos não registrados na Anvisa (artigo 19-7 da Lei 8.080/90), com igual razão não poderiam as operadoras serem compelidas a fazê-lo. Uma vez mais caminhou bem o STF.
A ausência de inclusão de procedimento ou tratamento no rol da ANS impede, como regra geral, a sua concessão judicial, salvo quando preenchidos os requisitos previstos no item 2, demonstrados na forma do art. 373 do CPC. Sob pena de nulidade da decisão judicial, nos termos do art. 489, §1º, V e VI, e art. 927, III, §1º, do CPC, o Poder Judiciário, ao apreciar pedido de cobertura de procedimento ou tratamento não incluído no rol, deverá obrigatoriamente: (a) verificar se há prova do prévio requerimento à operadora de saúde, com a negativa, mora irrazoável ou omissão da operadora na autorização do tratamento não incorporado ao rol da ANS; (b) analisar o ato administrativo de não incorporação pela ANS à luz das circunstâncias do caso concreto e da legislação de regência, sem incursão no mérito técnico-administrativo; (c) aferir a presença dos requisitos previstos no item 2, a partir de consulta prévia ao Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (Natjus), sempre que disponível, ou a entes ou pessoas com expertise técnica, não podendo fundamentar sua decisão apenas em prescrição, relatório ou laudo médico apresentado pela parte; e (d) em caso de deferimento judicial do pedido, oficiar a ANS para avaliar a possibilidade de inclusão do tratamento no rol de cobertura obrigatória.
Aqui se determina a vedação à dispensação judicial de tratamentos de saúde fora do rol da ANS sem a observância dos pressupostos preconizados no item 2, o que é fundamental, tendo em vista que o precedente dessa ADI é vinculante para os demais órgãos judiciais e da Administração Pública (artigo 102, §2º da Constituição). Doravante, juízes terão que se curvar à regra estabelecida pelo STF, o que gerará maior previsibilidade às operadoras e menor sobrecarga do sistema.
A decisão vai além: descortinando uma tendência do Judiciário a bem de conter a grande massa de processos, determina a necessidade de busca por solução consensual com a operadora antes do ingresso em juízo, exigindo prova dessa circunstância a justificar, quiçá, o respectivo interesse processual. Será necessário avaliar se a resposta da operadora chegará a contento para suavizar a espera do paciente, senão potencialmente juízes alegarão urgência para descumprir esse requisito.
O juiz poderá avaliar, sob o prisma da estrita legalidade, o ato de negativa de incorporação do tratamento pleiteado ao rol da ANS. Em outras palavras, o magistrado não poderá enfrentar o mérito do ato administrativo, discutindo o acerto, o erro ou a justiça da decisão da ANS. Precedente que pode ser usado em outros casos em que essa discussão se impõe desde Marbury v. Madison.
Nestes casos, o juiz deverá motivar sua decisão com base em pareceres do Natjus ou entes ou pessoas com expertise técnica para além da simples prescrição, relatório ou laudo médico unilateral apresentado pela parte. Essa expertise técnica soa à necessidade de um perito, porque tal profissional deverá contar com a confiança do juízo. Haverá uma nova modalidade de especialistas judiciais em saúde para assessorar magistrados? Ou uma eclosão de produções antecipadas de prova? É aguardar para verificar como essa exigência será operacionalizada.
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Por fim, e em solução muito adequada, deverá o juiz concedente do tratamento oficiar a ANS para exame da incorporação desse tratamento ao respectivo rol. Excelente medida, muito em linha com o que defendo no meu livro já citado. Esse tipo de expediente procura assegurar equidade e garantir que o Judiciário pode, sim, ser um adequado ator no campo das políticas públicas.
O STF andou na mesma linha, mas foi ainda mais detalhista que o STJ em 2022. Ambas as decisões, contudo, partem do pressuposto de que se o sistema de saúde não gozar de certa previsibilidade e da presunção de competência do Poder Público, o desajuste, o descontrole e o desespero com a judicialização da saúde continuarão, com um possível colapso do sistema: medicamentos que não são distribuídos, terapias não incorporadas ao rol, preços dos produtos e insumos, além das operadoras, nas alturas.
O SUS é um dos maiores sistemas de combate à desigualdade do mundo. Ele não pode ser o pretexto para criar mais desigualdades, prestigiando quem consegue acesso ao Judiciário e não dando a devida importância ao trabalho do Poder Público na administração da saúde neste país de dimensões continentais. A decisão do STF é, sem dúvida, um bom ponto de partida. Caberá aos atores do sistema executarem o que foi definido e os resultados serem, oportunamente, avaliados.
[1] Judiciário e Saúde: excessos, limites e remédios. Curitiba: Juruá, 2016.