PLP 234/23 e garantias de privacidade, propriedade de dados e sua monetização

Em 28 de julho de 2025, o Laboratório de Políticas Públicas e Internet (Lapin) publicou Nota Técnica, de autoria de Fabiana Cunha, Henrique Pinto Coelho, Raquel Rachid e Leandro Modolo, alertando para os riscos do PLP 234/2023 e propondo um debate público sobre a monetização de dados no Brasil.

A Nota, também publicada como artigo em portais na internet, levanta preocupações sobre o projeto, que cria o Ecossistema Brasileiro de Monetização de Dados e institui a Lei Geral de Empoderamento de Dados.

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Embora a nota tenha méritos ao apontar riscos potenciais, sua análise apresenta limitações, como viés contra a monetização, ausência de propostas concretas e desconsideração de dispositivos do PLP que já abordam as preocupações levantadas. Este artigo avalia os argumentos da nota em termos de profundidade, precisão e equilíbrio, considerando os aspectos jurídicos, sociais, econômicos e regulatórios do PLP 234/2023.

Contexto e objetivo da Nota Técnica

A Nota Técnica do Lapin alerta para os riscos do PLP 234/2023, apresentado pelo deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP) em novembro de 2023, que regula a monetização de dados pessoais, permitindo que titulares participem de seu uso econômico e introduzindo tributação sobre receitas de empresas que processam grandes volumes de dados. O texto propõe um debate público, destacando preocupações com privacidade, desigualdade social e possível enfraquecimento da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Contudo, a análise carece de profundidade em alguns pontos, enfatizando riscos sem explorar benefícios do projeto. Atualmente, dados gerados por usuários já são amplamente utilizados por empresas sem retorno financeiro aos titulares, e a “fadiga do consentimento” não impede que esses concordem com tais práticas. O PLP propõe a Lei Geral de Empoderamento de Dados e o Ecossistema Brasileiro de Monetização de Dados, onde receitas de dados seriam tributadas, e os titulares poderiam transacionar seus dados, mantendo sua propriedade e recebendo benefícios econômicos.

A iniciativa é inovadora, permitindo que titulares autorizem, revoguem ou transacionem seus dados com contrapartida financeira, além de prever tributação para empresas que lidam com dados de pelo menos 50 mil titulares. A nota reconhece a relevância do tema, mas adota tom alarmista, focando em riscos sem uma análise equilibrada das oportunidades de inovação, inclusão econômica e soberania de dados.

Pontos positivos

A nota acerta ao destacar preocupações legítimas sobre os desafios do PLP, especialmente quanto à proteção da privacidade e à amplificação de desigualdades sociais. No Brasil, onde a desigualdade econômica é expressiva (evidenciada pelo coeficiente de Gini), populações vulneráveis poderiam transacionar dados por necessidade, comprometendo sua privacidade. A menção ao risco de um “vale-tudo” na comercialização de dados é pertinente, assim como a proposta de debate público, reconhecendo a complexidade do tema e a necessidade de envolver sociedade civil, acadêmicos e reguladores.

A referência a padrões internacionais, como o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) da União Europeia, reforça a importância de alinhar o PLP a diretrizes globais. A preocupação com o lobby de big techs, que resistem a regulações que aumentem custos ou limitem acesso a dados, também é válida. Contudo, o PLP já contempla essas questões, reforçando proteções da LGPD, incorporando normas internacionais e garantindo o direito de propriedade de dados no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor.

Limitações e críticas

Apesar de seus méritos, a Nota apresenta limitações que comprometem sua eficácia como análise crítica. A seguir, detalhamos os principais pontos de crítica:

Falta de profundidade na análise dos benefícios do PLP 234/2023

A Nota foca nos riscos do PLP, como o possível enfraquecimento da LGPD e desigualdades sociais, mas negligencia os benefícios. O PLP cria um ambiente regulatório pioneiro, permitindo que titulares monetizem seus dados, redistribuam riqueza e fortaleçam a soberania nacional. A ausência de análise sobre como o Ecossistema Brasileiro de Monetização de Dados poderia promover inclusão econômica, especialmente para populações de baixa renda, resulta em uma visão unilateral.

O mercado global de monetização de dados deve alcançar US$ 11,72 bilhões até 2026, e o Brasil, com 89,1% da população conectada à internet em 2024, é um dos maiores geradores de dados. O PLP posiciona o Brasil como líder em regulação de dados, mas a Nota subestima esse potencial.

Exagero nos riscos de enfraquecimento da LGPD

A Nota sugere que o PLP cria um “vale-tudo” no tratamento de dados, mas carece de fundamentação. O PLP reforça o consentimento livre, informado e específico, alinhando-se à LGPD, e veda práticas como “super-cookies” sem consentimento. Dados são tratados como “bens singulares”, permitindo cessão onerosa com consentimento revogável, sem alienação.

A crítica de enfraquecimento da LGPD não apresenta evidências concretas, devendo a Nota comparar dispositivos específicos e propor ajustes, em vez de especulações alarmistas. O Open Finance, liderado pelo Banco Central, complementa a LGPD, e o PLP segue caminho semelhante.

Tratamento superficial das questões de desigualdade social

A nota aponta o risco de populações vulneráveis transacionarem dados por necessidade, mas não explora soluções. O PLP destina receitas da tributação de dados a fundos como o de Erradicação da Pobreza, podendo reduzir desigualdades. A alta conectividade no Brasil (90% dos domicílios em 2021) e o tempo médio de conexão (9h32min diários) sugerem que a monetização pode ser inclusiva, se regulada adequadamente. A nota, porém, não discute salvaguardas específicas, como limites de compensação ou educação digital.

Ausência de propostas concretas

A proposta de debate público é válida, mas a Nota não oferece sugestões práticas para aprimorar o PLP, como a criação de um órgão regulador independente, limites para comercialização de dados sensíveis ou programas de educação digital. Tecnologias como a dWallet da DrumWave, que permitem controle e valoração de dados, poderiam ser integradas ao PLP, mas a Nota não explora essas possibilidades.

Viés contra a monetização de dados

A nota reflete viés contra a monetização, enfatizando cenários negativos sem reconhecer que dados são a “classe de ativos mais valiosa do mundo”, gerada por indivíduos sem autonomia econômica. A monetização regulada pode empoderar titulares, mas a nota ignora isso. A crítica de que o PLP isolaria o Brasil de padrões internacionais desconsidera seu pioneirismo, inspirado em modelos como o da China. Proposições semelhantes nos EUA ainda não foram aprovadas, reforçando a inovação brasileira.

Influência de interesses corporativos

A nota critica o lobby das big techs e a parceria da DrumWave com Dataprev, Serpro e Banco Central, sugerindo favorecimento. A DrumWave, startup californiana com executivos brasileiros, desenvolveu a dWallet, usada em um projeto-piloto com a Dataprev para monetizar dados de contratos de empréstimo consignado. A iniciativa permite que cidadãos gerenciem dados via uma “conta digital de dados”, com ganhos estimados de US$ 50 mensais por participante, promovendo inclusão financeira.

A Dataprev garante que a DrumWave não acessa dados brutos, apenas gerencia carteiras digitais, mantendo dados em bases seguras. A parceria é estratégica, dado o mercado brasileiro de dados, mas a nota não avalia seu impacto na concorrência ou barreiras à entrada de outros atores. O PLP não prevê privilégios a empresas, incentivando concorrência e desenvolvimento tecnológico.

Implicações para o debate público

A proposta de debate público é louvável, mas exige equilíbrio. Dados são um ativo econômico, com consumidores processando 50% dos dados globais sem retorno justo. O PLP alinha-se a essa visão, mas precisa de salvaguardas robustas. A nota poderia sugerir diretrizes, como incluir comunidades vulneráveis e especialistas internacionais no debate, ou comparar o PLP com o RGPD e leis estaduais dos EUA para propor ajustes.

A criação de um órgão regulador independente, sugerida em artigo publicado com James Görgen neste JOTA, enfrenta limitações constitucionais, pois depende de iniciativa presidencial. A Lei Felca (PL 2628/2024) prevê uma autoridade autônoma para proteção de direitos digitais de crianças e adolescentes, indicando avanços nessa direção.

Recomendações para aprimorar o PLP 234/2023

O PLP complementa a LGPD, classificando dados como “bens singulares” no Código Civil e garantindo direitos adicionais no Código de Defesa do Consumidor. Para mitigar riscos, sugerem-se:

Fortalecimento da privacidade: Explicitar sanções claras para violações, reforçando a LGPD. Um órgão regulador independente seria ideal, mas depende do Executivo.
Mitigação da desigualdade: Estabelecer valores mínimos de compensação e programas de educação digital para populações vulneráveis.
Transparência e concorrência: Garantir abertura do Ecossistema Brasileiro de Monetização de Dados a múltiplos atores.
Alinhamento internacional: Incorporar contribuições do RGPD e legislações como a da Califórnia.
Interoperabilidade: Assegurar padrões abertos e portabilidade de dados, como previsto no PLP.

Conclusão

A Nota Técnica objeto desta análise desempenha um papel importante ao alertar para os riscos do PLP 234/2023, que também podem ser aplicados a proposições com propósitos convergentes, como o PL 4986, de 2024, do deputado Pedro Uczai (PT-SC), mas sua análise é limitada por um viés contra a monetização de dados, falta de profundidade na avaliação dos benefícios e ausência de propostas concretas.

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Porém, é necessário adotar uma visão mais ampla, destacando o potencial do PLP para promover inclusão econômica e soberania de dados. Para que o debate público proposto pelos seus Autores seja produtivo, é necessário um enfoque equilibrado que reconheça tanto os desafios quanto as oportunidades do projeto, com recomendações práticas para fortalecer a proteção dos titulares e alinhar o Brasil às melhores práticas internacionais.

O PLP 234/2023, ao contrário do que sugere a nota, já contempla mecanismos de proteção, inovação e inclusão econômica.

A instalação, em breve, da comissão especial que examinará o PLP 234 será um locus central para que essa discussão ocorra e que esses aspectos sejam melhor compreendidos pelos seus integrantes e demais partes interessadas e pela sociedade em geral.

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