O Programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover) trouxe avanços na política automotiva brasileira ao combinar critérios regulatórios de desempenho energético-ambiental com um regime de incentivos fiscais orientado à Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e à integração em cadeias globais de valor. Contudo, a presença preponderante de multinacionais no setor torna a efetividade dos investimentos em P&D um desafio.
Em comparação aos programas anteriores, o Mover amplia o escopo regulatório e alinha metas ambientais a instrumentos econômicos. A partir de 2027, exigirá pegada de carbono “berço-ao-túmulo”, incorporando Análise de Ciclo de Vida (ACV) e Intensidade de Carbono da Fonte de Energia como parâmetros normativos. Por sua vez, o Inovar-Auto (2013-2017) baseou-se em elevação de IPI com créditos vinculados a conteúdo local e etapas produtivas, sendo descontinuado em 2017.
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Já o Rota 2030 (2018-2023) avançou em eficiência e segurança, porém foi menos ambicioso em ACV e pouco orientado à inserção exportadora. O Mover supera ambos ao condicionar incentivos a métricas ambientais abrangentes, premiar integração internacional e viabilizar P&D com cumulatividade por esforço tecnológico, sob a governança do Fundo Nacional de Desenvolvimento Industrial e Tecnológico (FNDIT).
O Mover premia a diversificação de mercados e a integração às cadeias globais de valor como critério cumulativo do crédito financeiro, sinalizando política de inserção exportadora. Isso corrige uma lacuna dos programas anteriores, geralmente voltados ao mercado interno, e está alinhado à diretriz de expandir a participação da indústria instalada nas cadeias globais de valor.
No eixo de P&D, o Mover prevê crédito financeiro correspondente a 50% dos dispêndios certificados em pesquisa e desenvolvimento (art. 16), na forma de crédito de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) passível de compensação ou ressarcimento, aumentando a previsibilidade jurídica do incentivo.
O desenho inova ao permitir acréscimos cumulativos ao crédito com base em três indicadores: (i) realização de atividades fabris e de engenharia no país; (ii) diversificação de mercados com integração às cadeias globais de valor; e (iii) produção local de tecnologias de propulsão avançada, veículos de nova propulsão e/ou sistemas eletrônicos embarcados.
Apesar dos avanços promissores do Mover, a literatura de economia política da inovação alerta para o risco de baixo engajamento local das filiais das multinacionais para dar efetividade aos investimentos em P&D. As estratégias corporativas podem levar multinacionais a ajustar processos para cumprir a letra da lei — por exemplo, montando (CKD/SKD) para atender conteúdo local e executando P&D mínimo elegível — sem internalizar capacidades tecnológicas no ecossistema nacional de inovação.
O recente caso envolvendo a multinacional chinesa BYD ilustra essa tensão. A empresa opera no Brasil com montagem local de ônibus elétricos desde meados da década passada e, na nova planta de Camaçari (BA), anunciou a fase inicial de montagem de veículos a partir de kits CKD, com produção plena prevista apenas para o final de 2026. A montagem de veículos utilizando kits prontos reduz o uso de componentes locais na produção e não promove efeitos positivos no emprego e no investimento em P&D.
Na prática, é comum o cumprimento estrito da letra da lei: abrem-se fábricas de montagem e investe-se exatamente o mínimo exigido em P&D para garantir acesso ao mercado interno, proteção contra importações e incentivos financeiros — sem, contudo, executar os objetivos da política.
Na manufatura, a resposta típica aos requisitos de conteúdo local passa por montar veículos a partir de kits (CKD) ou por trazer fornecedores globais já consolidados, em vez de construir laços com empresas domésticas. Assim, as filiais de multinacionais intensivas em tecnologia, em geral, não expandem sua capacidade de P&D para aprofundar a base de conhecimento no país; investem o suficiente para aproveitar incentivos e atender a demandas imediatas de mercado
Em 1995, a Emenda Constitucional 6 acabou com a categoria de “empresa brasileira de capital nacional” — um instrumento que permitia ao Estado dar preferência temporária e condicionar benefícios a empresas sob controle nacional em setores estratégicos. A distinção, calcada no poder de controle societário, permitia ao Estado atribuir preferências e benefícios temporários para setores estratégicos, inclusive na compra governamental, como meio de assegurar efeitos sistêmicos sobre o ecossistema de inovação e, por consequência, a efetividade da soberania econômica. A ausência desse instrumento reduz a capacidade de condicionar incentivos a compromissos de P&D a encadeamentos locais.
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A consolidação do Mover como vetor de neoindustrialização requer recolocar na agenda legislativa a diferenciação entre empresas privadas de capital nacional e filiais de multinacionais sediadas no país, de modo a permitir que os incentivos sejam seletivos e condicionados à realização de P&D no território, à formação de fornecedores e à internalização do aprendizado tecnológico no Sistema Nacional de Inovação.
Num contexto de acirramento de disputas comerciais e competição interestatal, a extensão desse critério jurídico-institucional a outros complexos produtivos estratégicos (energia, saúde, eletrônica, bens de capital), poderia maximizar os transbordamentos tecnológicos e acelerar o desenvolvimento industrial do País. Tal desenho institucional reaproximaria a política industrial dos objetivos constitucionais de soberania econômica e desenvolvimento.