Terras raras, Kafka e a muralha da China

Há um conto de Franz Kafka[1](1883-1924) em que, sob a perspectiva de um dos construtores da Grande Muralha da China, se reflete sobre sua construção fragmentada e aparentemente sem sentido.

A muralha, onde trabalharam todos os chineses, preparados para o ofício desde a infância, não foi erguida de modo contínuo, mas em trechos isolados, que muitas vezes não se conectavam entre si, de modo que os trabalhadores construíam um pedaço e depois eram deslocados para outro ponto distante, e assim sucessivamente.

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Embora supostamente destinada à proteção contra os inimigos externos, a execução da obra teria servido, muito antes, para consolidar a unidade do território e a união do povo chinês, que vinha de todos os cantos movidos pelo ideal de construir para os compatriotas, uma sólida proteção contra invasores.

No Brasil, o jornalista Antonio Callado (1917-1997), em uma crônica de 1979[2], utilizou o conto de Kafka – e a ideia nele contida – para propor que seria o momento de construirmos a nossa própria muralha, já que o país experimentava naquele momento os efeitos da gradual abertura política sob o regime militar.

É possível afirmar, diante do agravamento da polarização político-partidária da última década, que a ideia de unidade nacional ainda carece de consolidação. É também verdade que o quadro atual decorre, principalmente, da ausência de concretização de políticas de longo prazo que incluíssem a melhora geral das condições de vida da população, que segue frustrada com a classe política.

No entanto, o atual contexto global parece oferecer ao Brasil uma nova oportunidade para erguer sua própria muralha: a crescente demanda global por terras raras, recurso do qual o país detém uma parcela significativa e que o coloca em posição estratégica de negociação.

Especificamente em relação aos Estados Unidos, o Brasil foi surpreendido recentemente com tarifas adicionais impostas pelo governo americano, que impactam de forma direta setores estratégicos da economia nacional. Apresentadas como mecanismo de proteção da indústria americana, tais sanções podem ser transformadas em oportunidade de diálogo, permitindo que o Brasil utilize seu potencial em minerais críticos — sobretudo as terras raras — como elemento estratégico em futuras negociações comerciais.

A movimentação não é inédita. Historicamente, a busca por matérias-primas estratégicas levou as grandes potências a adotarem políticas que moldaram suas relações internacionais, seja por meio de acordos diplomáticos, seja pela imposição de barreiras comerciais.

No caso brasileiro, porém, as tarifas podem ser lidas não apenas como obstáculo, mas como oportunidade: a de recolocar o país no centro da cadeia global de suprimento desses minerais, utilizando seu potencial em terras raras como trunfo estratégico nas negociações internacionais.

Nesse contexto, o Brasil se vê diante da oportunidade histórica de construir uma política mineral ampla e de longo prazo, capaz de destravar investimentos, estimular inovação e garantir uma distribuição mais equilibrada da renda mineral entre Estado, setor produtivo e sociedade, sem deixar de articular sua política mineral como instrumento de soberania nacional e desenvolvimento sustentável.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad[3], e a ministra do Planejamento, Simone Tebet[4], já destacaram, em entrevistas recentes, que o interesse internacional pelas terras raras brasileiras — consideradas o “ouro do século 21” pela sua importância na transição energética, na produção de semicondutores e em aplicações militares de alta tecnologia — pode abrir espaço para negociações, desde que conduzidas de forma a preservar a soberania nacional.

O Legislativo brasileiro, por sua vez, tem se mobilizado em torno do tema. Recentemente, o Senado aprovou a criação da Frente Parlamentar em Defesa das Terras Raras Brasileiras, espaço suprapartidário destinado a debater a exploração sustentável e a propor uma política nacional ampla para o setor. Estratégias semelhantes também têm sido debatidas nos estados, que já se movimentam para fomentar a atividade minerária voltada aos minerais críticos.

Essas iniciativas, ainda que incipientes, buscam responder à geopolítica internacional com medidas de proteção à soberania econômica e à sustentabilidade. É preciso, contudo, que nossas autoridades sejam cuidadosas para que as medidas adotadas não resultem apenas em barreiras comerciais e burocráticas, mas em políticas efetivas de desenvolvimento industrial, inovação tecnológica e inserção competitiva do Brasil nas cadeias globais de valor. Para isso, o diálogo entre si e com o setor produtivo é fundamental.

Mais do que medidas pontuais e fragmentadas, o objetivo deve ser criar condições que destravem investimentos, assegurem segurança regulatória e viabilizem uma distribuição mais equilibrada da renda mineral entre Estado, setor produtivo e sociedade.

Elas também devem sinalizar que a muralha que precisamos construir, com a contribuição de cada interessado, não se erguerá de pedras e tampouco servirá como barreira, mas de políticas públicas e investimentos consistentes, que de forma conjunta e coordenada, sejam capazes de transformar recursos naturais em desenvolvimento sustentado e de longo prazo, que alcem o Brasil à condição de potência do setor e possibilite a sustentação de negócios vantajosos e duradouros.

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Se antes a muralha evocada por Kafka e reapropriada por Callado remetia à coesão política e social, hoje ela pode ser compreendida como a urgência de uma estratégia nacional capaz de transformar nossa riqueza mineral em prosperidade compartilhada. Não se trata de afastar “inimigos externos”, tampouco de nos isolarmos, mas buscar a realização de melhores parcerias e negócios, possibilitando o melhor aproveitamento do cenário econômico e geopolítico atual.

A disputa global por minerais críticos oferece ao Brasil não apenas a chance de inserir-se em cadeias produtivas estratégicas, mas também a de erguer, enfim, uma muralha feita de visão de futuro, soberania e desenvolvimento sustentável. Perder essa oportunidade significará, mais uma vez, construir trechos isolados que não se conectam — e desperdiçar a chance histórica de consolidar o país como ator central no século 21.

[1] KAFKA, Franz. The Great Wall of China. In: The Great Wall of China and other pieces. Londres. Secker and Warburg, 1946. P. 81-93.

[2] CALLADO, Antonio. A China já tem muralha. Agora é a nossa vez. In: O país que não teve infância. 1ª ed. Belo Horizonte. Autêntica. 2017. P. 17-19.

[3] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2025/08/23/haddad-entrevista.htm

[4] https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/tarifaco-temos-minerais-criticos-a-oferecer-aos-eua-diz-tebet/?utm_source=chatgpt.com

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