Economia movida a dados

Após ter mostrado, em artigo recente, que a economia movida a dados vem revolucionando o capitalismo[1], buscarei explorar, na presente oportunidade, alguns dos desafios que os chamados novos negócios trazem para a regulação jurídica, especificamente no que se refere à adoção do modelo de plataformas e ao gerenciamento informacional que lhes é inerente.

Com efeito, é importante lembrar que vários desses novos negócios adotam o modelo de plataformas, que são formas de conectar mercados de dois ou mais lados. A rigor, tal modelo não é propriamente novo, uma vez que feiras, supermercados e cartões de crédito podem ser vistos como exemplos de plataformas. Contudo, a economia movida a dados muda e amplifica a dimensão da conexão e do matchmaking, potencializando em grande escala os benefícios e as eficiências das plataformas.

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Com efeito, o acesso aos dados pessoais e às informações que deles decorrem, ainda mais quando sistemas de inteligência artificial são utilizados para fazer diagnósticos e predições nesse sentido, possibilitam matchings cada vez mais precisos, aumentando a probabilidade de que se estabeleça uma relação – de natureza comercial ou não – entre os membros dos diversos mercados interconectados.

O que se tem verificado também é a evolução de uma interação que foi pensada inicialmente como instrumento da economia do compartilhamento – que prioriza as trocas entre pares (peer to peer) e não necessariamente de caráter econômico – para modelos empresariais cada vez mais robustos, em que as plataformas – e os agentes empresariais que as controlam – apresentam grande protagonismo, não raro estabelecendo todos os aspectos dos contratos que serão estabelecidos no seu interior.

É claro que existem grandes diferenças entre as plataformas, que podem conferir aos usuários maior ou menor autonomia para o estabelecimento de relações ou para a celebração de contratos. Com efeito, as plataformas ora se apresentam como marketplaces, ora como agentes que exercem direção empresarial e fixam todos os pontos do contrato, inclusive o seu preço.

Não obstante, todas as plataformas terão que atrair participantes para todos os lados do mercado e disciplinar as relações entre eles, o que inclui o estabelecimento de regras sobre acesso, permanência, interação e exclusão. Não é sem razão que muitas das discussões atuais do chamado constitucionalismo digital dizem respeito a essas questões, pois a vedação de acesso ou a exclusão de determinadas plataformas são capazes de gerar inúmeros prejuízos aos usuários, podendo ser consideradas, a depender do caso, até mesmo como um banimento digital.

Não obstante a necessidade de gerenciar as interações que ocorrem no seu interior, fato é que o modelo de plataforma apresenta tantas vantagens e eficiências que mesmo as inovações mais recentes acabam se estruturando a partir disso. É o que vem acontecendo com os sistemas de inteligência artificial generativa, por exemplo.

Não é sem razão que o próprio ChatGPT se considera um intermediário cognitivo, no sentido que traduz, organiza e conecta informações a partir de um modelo de plataforma que une usuários, produtores de informação e conteúdo (autores de textos, documentos, bases de dados, pesquisadores, empresas que geram conhecimento e que indiretamente alimentam o seu treinamento) e desenvolvedores/terceiros (pessoas ou empresas que constroem aplicações sobre a API, como soluções para integração a serviços jurídicos, educacionais ou empresariais).

Como a governança desses modelos tem ocorrido por meio de algoritmos, os julgamentos sobre fatos, questões, indivíduos e empresas, inclusive aqueles necessários ou indispensáveis para assegurar o acesso a oportunidades, também serão decididos algoritmicamente, com todos os riscos daí decorrentes, como é o caso das discriminações algorítmicas. Isso sem falar nas possibilidades de manipulação dos usuários, tal como já se adiantou no artigo anterior[2].

Por essa razão, já se tornou usual a alegação de que, em vários dos novos negócios, os mercados realmente em disputa são os de tempo, atenção ou mesmo de consciências dos usuários, o que pode ser potencializado por diversos recursos de arquitetura ou design das plataformas, de que são exemplos os chamados padrões manipulatórios (dark patterns ou deceptive patterns)[3].

Outro aspecto importante dos novos negócios é que todas as plataformas são, em alguma medida, gestoras informacionais. Dentre os conteúdos por ela administrados encontram-se dados pessoais dos usuários (que estão protegidos pela LGPD), dados concorrencialmente sensíveis de pessoas jurídicas (cuja proteção decorre do segredo de empresa e das regras de prevenção à concorrência desleal), conteúdos gerados por elas ou terceiros que podem estar sujeitos a diversas proteções (caso dos conteúdos tutelados pelo direito autoral) e ainda conteúdos ofensivos ou falsos, criados para violar direitos ou para a desinformação.

É claro que o tipo de conteúdo a ser gerenciado dependerá do modelo específico da plataforma, mas esta sempre terá considerável ingerência para determinar que conteúdos poderão trafegar em seu “espaço” e como poderão trafegar, o que pode gerar uma série de conflitos entre todos os seus usuários.

Não é sem motivo que temos visto uma explosão de demandas relacionadas a esse gerenciamento, sendo exemplo disso a recente ação por meio da qual a Folha de S.Paulo processou a OpenAI sob a acusação de que o ChatGPT, ao se apropriar indevidamente dos seus conteúdos, estaria praticando violação de direitos autorais e concorrência desleal[4].

A discussão subjacente a esse tipo de demanda diz respeito ao fato de que a economia movida a dados pode estar propiciando às plataformas muitas formas de rent seeking, ou seja, de extração de renda sem geração de valor. Como bem resume Frank Pasquale, em vários modelos de negócio, fica cada vez mais difícil diferenciar makers, takers e fakers[5].

Por outro lado, a economia movida a dados pode estar sendo responsável pela deterioração estrutural do fluxo informacional, já que, especialmente em redes sociais e plataformas de distribuição de conteúdos, como é o caso do YouTube, os modelos de monetização das plataformas têm priorizado conteúdos de baixa qualidade ou sabidamente falsos desde que estes gerem maior engajamento[6].

Acresce que há o surgimento paralelo de novos mercados que comprometem ainda mais a qualidade do fluxo informacional, de que são exemplos os influencers[7] e os novos negócios de aquisição artificial de reputação[8].

Se achávamos que as dificuldades de gerenciamento de conteúdos seriam resolvidas com a inteligência artificial generativa, temos observado que esta vem gerando dificuldades adicionais, como conteúdos falhos, bizarros ou alucinações[9] e até mesmo “atitudes” de ameaças e manipulação de usuários[10].

Os equívocos decorrentes do mau gerenciamento informacional podem gerar danos diversos, que vão desde violações aos direitos pessoais dos usuários até mesmo a prática de ilícitos de concorrência desleal, uma vez que, para agentes empresariais, em muitos casos não basta estar na plataforma: o modo como ele é julgado, avaliado, posicionado ou ranqueado tem desdobramentos concretos em sua maior ou menor probabilidade de celebrar negócios e, em muitos casos, pode ser decisivo até para a sua permanência no mercado.

Dessa maneira, sem um gerenciamento informacional adequado, que assegure a todos os lados do mercado um mínimo de transparência e inteligibilidade, assim como possibilidades exequíveis de impugnar ou recorrer dos resultados algorítmicos, cria-se um problema estrutural que pode comprometer não apenas a sociedade e a política, mas a própria economia, cujo bom funcionamento depende de informações fidedignas.

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Hoje já se aponta que as redes sociais estão comprometendo a eficiência dos mercados[11], abrindo espaços para atos de concorrência desleal e inúmeras formas de expropriação de consumidores. Daí a necessidade de se encontrar meios para assegurar transparência e inteligibilidade[12], bem como para ressignificar os contornos do segredo de empresa[13].

Consequentemente, é fundamental entender que o gerenciamento informacional, como pilar importantíssimo dos novos negócios que se estruturam a partir do modelo de plataforma, precisa ser adequadamente regulado, sob pena de comprometer não apenas inúmeros direitos dos usuários – pessoas físicas ou jurídicas, consumidores ou agentes econômicos –  como também todas as esferas da vida humana que dependem de informação para funcionarem adequadamente: a sociedade, a política e a economia.

[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/economia-movida-a-dados

[2] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/economia-movida-a-dados

[3] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/o-que-sao-dark-patterns; https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/como-conter-as-dark-patterns

[4] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/08/folha-entra-com-acao-contra-openai-por-concorrencia-desleal-e-violacao-de-direitos-autorais.shtml

[5] PASQUALE, Frank. Black Box Society. The Secret Algorithms that Control Money and Information. Harvard University Press, 2016.

[6] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/a-delicada-questao-da-monetizacao-dos-negocios-de-divulgacao-de-conteudos

[7] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/o-papel-e-a-responsabilidade-dos-influencers

[8] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/mercado-de-reputacao

[9] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/as-falhas-da-inteligencia-artificial-generativa-do-google

[10] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/o-lado-enganoso-da-inteligencia-artificial

[11] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/as-redes-sociais-estao-comprometendo-a-eficiencia-dos-mercados

[12] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/transparencia-de-algoritmos-x-segredo-de-empresa

[13] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/como-conter-as-dark-patterns

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