Precatórios, correção monetária e a busca por coerência

Em 2013, o Supremo Tribunal Federal julgou a ADI 4425 e enfrentou um dos pontos mais sensíveis do regime de precatórios: a forma como o Estado atualiza suas dívidas judiciais.

O § 12 do art. 100 da Constituição da República, com a redação dada pela Emenda Constitucional 62, de 2009, determinava que “a atualização de valores de requisitórios, após sua expedição, até o efetivo pagamento, independentemente de sua natureza, será feita pelo índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança”. Sobre este dispositivo, o ministro Carlos Ayres Britto, relator, externou duas preocupações principais: a manutenção do valor real do pagamento requisitado e a isonomia entre credor e devedor.

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A isonomia, segundo asseverou o ministro, restou violada em razão da locução “independente de sua natureza”. As obrigações tributárias eram legalmente atualizadas monetariamente e sofreriam incidência de juros, simultaneamente, pela taxa do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (taxa Selic).

A taxa Selic foi concebida no fim dos anos 1970[1] e, a partir do art. 13 da Lei 9.065, de 20 de junho de 1995, passou a ser obrigatoriamente utilizada para o cálculo dos juros incidentes sobre a Dívida Mobiliária Federal Interna. Pelo art. 84, inciso I, da Lei 8.981, de 20 de janeiro de 1995, as obrigações tributárias da União deveriam sofrer a incidência de juros de mora “equivalentes à taxa média mensal de captação do Tesouro Nacional relativa à Dívida Mobiliária Federal Interna”.

O ministro Ayres Britto destaca, assim, o entendimento firmado em 2007 pela Suprema Corte, no bojo do RE 453.740, pelo qual “remunera-se do mesmo modo como se exige o pagamento”. Logo, entendeu-se constitucional a incidência do índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança para precatórios não tributários; declarou-se, contudo, a inconstitucionalidade do dispositivo quanto a débitos tributários.  Isto porque as obrigações não tributárias em que a União figura, como credora ou devedora, não sofriam incidência de juros de mora pela taxa Selic.

Assim, deve-se pagar pelos mesmos critérios pelos quais se cobra. Em relação às obrigações tributárias, a União cobra pela taxa Selic, logo, deve pagar pela taxa Selic. Nas obrigações tributárias não há cobrança pela Selic, logo, nestas é constitucional a incidência do índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança.

A partir da ADI 4425, a Advocacia-Geral da União, pelo Parecer AGU/SGCT/LHOR 049/2015 e pela NOTA/PGFN/CRJ 872/2015, passaram a orientar no sentido de que os precatórios não tributários da União deveriam sofrer incidência de juros de mora pela caderneta de poupança, e os tributários pela taxa Selic.

A Emenda Constitucional 113, de 8 de dezembro de 2021, contudo, inverteu esta lógica. Em uma tentativa fácil, mas danosa e equivocada, de simplificar a sistemática, o seu art. 3º violou a jurisprudência do STF pela via inversa: previu a incidência de taxa Selic para qualquer precatório, independente de sua natureza.

Com isso, obrigações que a União cobrava mediante critérios diversos, como civis e administrativas não tributárias, passaram a ser pagas por ela com um critério atualmente mais custoso. Além da violação do entendimento do STF quanto à isonomia, o referido dispositivo aprofundou a crise dos precatórios sob o prisma fiscal.

Visando a corrigir a situação, a PEC 66, de 2023, aprovada em segundo turno pelo plenário do Senado no dia 2 de setembro, altera o art. 3º da Emenda Constitucional 113 para retornar aos critérios de isonomia consolidados na jurisprudência do STF.

O dispositivo passa a prever que, “nos requisitórios que envolvam a Fazenda Pública federal, a partir da sua expedição até o efetivo pagamento, a atualização monetária será feita pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), e, para fins de compensação da mora, incidirão juros simples de 2% a.a. (dois por cento ao ano), vedada a incidência de juros compensatórios”.

Em complemento, sedimenta expressamente, em sede constitucional, os precedentes do STF no RE 453.740 e na ADI 4425, quando em seu § 2º dispõe que “nos processos de natureza tributária serão aplicados os mesmos critérios de atualização e remuneração da mora pelos quais a Fazenda Pública remunera seu crédito tributário”.

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Por fim, transfere para o texto constitucional a Súmula Vinculante 17 do STF, e passar a dispor, pelo § 3º, que “durante o período previsto no § 5º do art. 100 da Constituição Federal, não incidem juros de mora sobre os precatórios que nele sejam pagos”.

Trata-se, a toda evidência, de um notório freio de arrumação no regime jurídico monetário destas obrigações, e integra, em um quadro maior, as ações jurídicas, técnicas, gerenciais e políticas empreendidas pela Advocacia-Geral da União, pelo Ministério do Planejamento e Orçamento e pelo Ministério da Fazenda para identificar e solucionar falhas estruturais no sistema de pagamento de obrigações judiciais da União2.

[1] “A implantação do Selic ocorreu em 14 de novembro de 1979, sob a égide da Circular 466, de 11 de outubro de 1979, do BCB, que aprovou o Regulamento do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia de Letras do Tesouro Nacional” (Banco Central do Brasil. Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic): conceito, base regulamentar, documentação e estatísticas. Brasília. Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/sistemaselic>. Acesso em: 5 set. 2025).

[2] Destaque-se aqui a relevância do Conselho de Acompanhamento e Monitoramento de Riscos Fiscais Judiciais, instituído pelo Decreto 11.379, de 12 de janeiro de 2023, como instância consultiva destinada a aprimorar a governança e a previsibilidade da gestão fiscal da União. O colegiado é vinculado à Advocacia-Geral da União e é composto por, além dela, o Ministério da Fazenda e o Ministério do Planejamento e Orçamento, e funciona como um espaço de articulação institucional para o acompanhamento de questões judiciais capazes de impactar as contas públicas.

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