Contratos de concessão são celebrados para perdurar por décadas – 15, 30 anos ou mais. Ao longo de sua execução, é altamente provável que enfrentem pelo menos um evento raro, extremo e transformador: um verdadeiro “cisne negro”, conceito consagrado por Nassim Nicholas Taleb[1].
Taleb define o cisne negro como um evento que possui três características essenciais: (i) é imprevisível do ponto de vista do conhecimento disponível até então; (ii) provoca impacto extremo sobre o sistema; e (iii) apenas retrospectivamente conseguimos construir explicações que o tornem compreensível e aparentemente previsível.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
Aplicado às concessões, esses eventos possuem potencial disruptivo sobre o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, podendo levar tanto à bancarrota da sociedade de propósito específico (SPE) quanto ao colapso do próprio projeto concessionário.
À primeira vista, essa realidade poderia dissuadir investidores institucionais, tradicionalmente orientados pela busca de segurança e previsibilidade na alocação de capital. No entanto, não é bem assim. Reconhecer a existência de cisnes negros não significa recusar o investimento, mas sim compreender que contratos de longa duração operam necessariamente em ambiente de incerteza — e, portanto, devem ser projetados para absorver choques e adaptar-se a realidades inesperadas.[2]
Neste ponto, é fundamental distinguir o risco da incerteza. O risco é mensurável, é possível atribuir-lhe uma probabilidade. A incerteza, especialmente a incerteza fundamental, resiste à quantificação por envolver eventos que transcendem o alcance do conhecimento preexistente. É nesse território da incerteza profunda que habitam os cisnes negros, conforme alerta Thierry Kirat[3] ao destacar os limites objetivos à completude contratual diante de eventos imprevisíveis e incalculáveis.
Ora, se é certo que eventos extraordinários ocorrerão — pois a história humana é pontuada por guerras, pandemias, colapsos financeiros e revoluções tecnológicas — não é tão certo assim antecipar nem sua natureza específica, nem o momento, a localização ou a magnitude de seus efeitos, e é aqui que mora o grande problema. Essa é precisamente a armadilha da previsibilidade retrospectiva de Taleb: após o evento, todos parecem saber o que fazer; antes dele, reina a cegueira coletiva.
Portanto, a questão não é evitar o cisne negro — tarefa impossível —, mas desenhar contratos e arranjos institucionais capazes de conviver com ele. Isso exige ir além da dogmática tradicional do Direito Administrativo, cuja matriz de risco geralmente parte de um modelo estático e formalista. Exige, ao contrário, uma engenharia jurídica de resiliência, com modelos flexíveis, dinâmicos e capazes de incorporar mecanismos adaptativos diante da ocorrência de eventos extremos (Teorema do Barquinho Klink)[4].
Em contratos baseados em fluxo de caixa, como os de infraestrutura, a resposta tardia do Poder Público ou a indefinição sobre o modo de recomposição do equilíbrio contratual podem gerar o estrangulamento financeiro do projeto concessionário, desorganização institucional e prejuízos ao interesse público e à segurança do usuário. Alocar, genericamente, os efeitos dos eventos imprevisíveis ao Poder Público está longe de ser suficiente. Tampouco parece viável fixar, ex ante, fórmulas de reequilíbrio diante do desconhecido radical.
O desafio consiste em institucionalizar ferramentas que confiram antifragilidade aos contratos. O antifrágil não apenas resiste ao choque, mas melhora com ele. Em termos contratuais, isso significa prever: (i) matrizes de risco evolutivas; (ii) cláusulas de reavaliação periódica; (iii) fundos de reserva não contingenciáveis; e, (iv) contas vinculadas (scrow accounts) capazes de funcionar como colchão de liquidez para amortecer o impacto de choques sistêmicos.
A teoria contratual regulatória avançou significativamente nos últimos anos, oferecendo segurança jurídica razoável para mecanismos sofisticados de gestão contratual. Destacam-se o reequilíbrio econômico-financeiro cautelar ou baseado em evidências (Instrução Normativa 33/2024), a utilização de contas vinculadas, a otimização contratual, sandboxes regulatórios e a previsão de reavaliações periódicas da matriz de alocação de riscos — exemplificados na 5ª rodada de concessões do estado de Mato Grosso.
Ainda assim, mesmo essas salvaguardas financeiras e contratuais podem se revelar insuficientes diante da ocorrência de um cisne negro. Nessas hipóteses excepcionais, poderá ser necessário repactuar o contrato em novas bases, com alterações substanciais que atingem a própria estrutura das obrigações originalmente assumidas pelas partes.
Para que essa repactuação seja juridicamente sustentável e legítima, duas condições são fundamentais. A primeira — e mais relevante — é que a preservação do contrato deve continuar alinhada com a promoção do interesse público, especialmente no que se refere à continuidade e qualidade dos serviços prestados aos usuários. A segunda é que o parceiro privado tenha demonstrado ser um agente confiável, adimplente e colaborativo, com histórico consistente de cumprimento das obrigações contratuais.
Preenchidos esses dois requisitos, a Administração Pública passa a dispor, na partida, de fundamentos para conduzir, com segurança jurídica e responsabilidade institucional, uma renegociação contratual voltada à superação da crise e à restauração da viabilidade do projeto.
Nesse contexto, é fundamental compreender a matriz de risco nos contratos de concessão como um instrumento dinâmico, passível de reinterpretação e reconfiguração diante das circunstâncias excepcionais que o tempo inevitavelmente impõe. Para lidar com esse ambiente de incerteza, é necessário incorporar, tanto no plano normativo quanto no institucional, uma cultura do consenso como técnica de governança contratual.
É nesse espírito que iniciativas como a criação da Secex Consenso no TCU (Instrução Normativa 91/2022), e das câmaras de conciliação das agências reguladoras — a exemplo da Compor/ANTT e da Compor/ANA — assumem papel estratégico. Esses fóruns funcionam como espaços institucionais de neutralidade técnica e legitimidade decisória, voltados à mediação, prevenção e resolução colaborativa de conflitos regulatórios, viabilizando a adaptação dos contratos às realidades supervenientes sem comprometer a segurança jurídica ou o interesse público.
Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA
A imprevisibilidade não pode ser tratada como exceção — ela é a regra em contratos complexos de longo prazo. A resposta adequada a esses eventos é a repactuação contratual, desde que preservado o interesse público.
Se os cisnes negros são inevitáveis, o dever da Administração Pública e dos concessionários é se preparar para eles. E isso se faz com contratos juridicamente resilientes, economicamente adaptáveis e institucionalmente flexíveis. No mundo forjado após o cisne negro, apenas sobrevive o que é capaz de evoluir.
*
As opiniões, interpretações e conclusões apresentadas neste artigo são de inteira responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, a posição institucional, as políticas ou o entendimento oficial do órgão ou entidade pública ao qual está vinculado. O conteúdo possui caráter estritamente acadêmico e não vincula, em nenhuma hipótese, a Administração Pública
[1] TALEB, Nassim Nicholas. A lógica do Cisne Negro: o impacto do altamente improvável. Edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Objetiva, 2021.
[2] MOREIRA, Egon Bockmann; MILANO, Célio Lucas. Contratos públicos de longo prazo: a segurança jurídica advinda da certeza da mudança. Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, v. 9, n. 34, abr.–jun. 2011.
[3] KIRAT, Thierry. L’allocation des risques dans les contrats: de l’économie des contrats « incomplets » à la pratique des contrats administratifs. Revue internationale de droit économique, v. XVII, n. 1, p. 11-46, 2003.
[4] NÓBREGA, Marcos; TUROLLA, Frederico; VÉRAS, Rafael. Contratação incompleta de projetos de infraestrutura: o Teorema do Barquinho de Klink. Working Paper, jul. 2023. Disponível em: https://atricon.org.br/wp-content/uploads/2025/04/Contratac%CC%A7a%CC%83o-incompleta-de-projetos-de-infraestrutura.pdf. Acesso em: 05 ago. 2025.