Uma mentira contada mil vezes não tornará a Ferrogrão constitucional

A sociedade brasileira mudou, e muito. Questões jurídicas, antes restritas a advogados e tribunais, hoje fazem parte do cotidiano da população em geral. Se antes o Supremo Tribunal Federal (STF) era uma sigla distante, hoje qualquer cidadão reconhece a fisionomia e até as opiniões de seus 11 ministros.

Nessa nova sociedade em que o Direito deixou de ser assunto restrito a tribunais, causa espanto a insistência de o governo federal tentar empurrar adiante a Ferrogrão, o projeto para construção de uma ferrovia de mais de 900 km, que cortaria a Amazônia para ligar o norte de Mato Grosso ao Pará.

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O discurso oficial fala em progresso e redução de custos para o agronegócio. Mas por trás da propaganda desenvolvimentista escondem-se impactos graves: a travessia de áreas sensíveis da floresta, a ameaça a comunidades indígenas e tradicionais e, sobretudo, uma manobra inconstitucional para desafetar parte de área protegida e abrir espaço para os trilhos.

O problema é: para empurrar a Ferrogrão goela abaixo, o governo pretende literalmente atropelar o Parque Nacional do Jamanxim, em uma manobra que é, ao mesmo tempo, ilegal e inconstitucional.

O Parque Nacional do Jamanxim, criado em 2006, fica no sudoeste do Pará e protege uma das áreas mais cobiçadas da Amazônia. São mais de 850 mil hectares de floresta, habitat de espécies ameaçadas e morada de comunidades tradicionais. Além de sua função ambiental, o parque cumpre papel estratégico no combate ao desmatamento e à grilagem de terras, já que está situado justamente em uma região de intensa pressão do agronegócio e da mineração.

O projeto da Ferrogrão só avança porque tenta se sobrepor a um Parque Nacional, alterando seus limites por meio da edição inconstitucional de uma Medida Provisória, convertida em lei. Esse atalho jurídico foi questionado no STF, sendo alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade relatada pelo ministro Alexandre de Moraes, que já suspendeu os efeitos da MP. Ao restabelecer os limites do Parque Nacional do Jamanxim, o STF, na prática, inviabilizou o projeto ferroviário.

Desesperado, o governo passou a alardear que bastaria alterar o traçado para que a Ferrogrão acompanhasse a faixa de domínio da BR-163, rodovia já existente. O problema é que estudos técnicos mostram que essa promessa é, simplesmente, inviável e até absurda. A região apresenta variações de altitude que chegam a 400 metros, algo incompatível com o transporte ferroviário. Afinal, desde o tempo do meu avô já se dizia: trem não sobe morro.

O Brasil sempre sonhou com grandes ferrovias para escoar a produção agrícola sem entupir as estradas de caminhões e reduzir riscos nas rodovias. O sonho é legítimo. O problema é quando esses projetos são empurrados a qualquer custo, com bilhões de reais, para depois morrerem na beira da estrada por falhas de planejamento e licenciamento.

A história está aí para provar: a Transamazônica, símbolo de integração nacional, jamais foi concluída; a Ferrovia Norte-Sul atravessou décadas de escândalos e entraves até se tornar uma caricatura do que prometia; e Belo Monte, mesmo erguida, precisou ser remendada várias vezes e ainda assim deixou um rastro de conflitos sociais, impactos ambientais, inviabilidade técnica-financeira dados os impactos, além dos questionamentos judiciais e internacionais.

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A Ferrogrão se insere nessa longa tradição de promessas embaladas em discursos de progresso, mas que escondem vícios de origem, impactos sociais, ambientais, além de manobras políticas e jurídicas duvidosas.

Não basta repetir mil vezes que o projeto é necessário ou viável: uma mentira, por mais que ecoe nos corredores de Brasília, jamais se transformará em verdade. O Brasil precisa de obras estruturantes, sim, mas que respeitem a Constituição, a floresta e as pessoas que nela vivem. Do contrário, seguiremos empilhando projetos faraônicos e inviáveis, enquanto a conta sobra, mais uma vez, para toda a sociedade e fazendo aumentar o custo Brasil.

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