Vamos partir de um mínimo comum civilizatório que define o Estado de Direito: a Constituição vale para todos. Desde o ladrão de galinha, passando pelo homicida até o golpista, não interessa quem é o réu. Direitos e garantias são para todos – sem relativismos nem garantismo de ocasião.
Muito se tem discutido sobre as decisões do ministro do STF Alexandre de Moraes: atos de ofício, violação ao juiz natural, prisões preventivas longas, penas desproporcionais, cerceamento de defesa, desigualdade processual e, mais recentemente, censura. Afinal, proibir alguém de falar nas redes sociais, ou de dar entrevistas, é pura e simples censura, vedada. Falou algo criminoso? Responda por isso. O que não se pode é impedir de falar, sob risco de nossa história ficar marcada pela prisão de um líder político que foi censurado, falou e acabou preso.
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Não se diga que estou abençoando Bolsonaro e suas barbaridades. É por elas que (também) está respondendo. Aliás, foi por elas que fui um dos organizadores, em 31 de maio de 2020, do manifesto “Basta!”, contra o então presidente.
Mas é preciso encarar o que está acontecendo no Brasil. Não é coincidência que, a cada década, surja um juiz “salvador da pátria”, exaltado por alguns como herói, que extrapola os limites, comete abusos e compromete o processo. Isso não é obra do acaso, é efeito do design das leis penais.
Moraes não é um ponto fora da curva. Muito do que ele faz é permitido pela lei; e muito é simplesmente inconstitucional. Ele é o produto de uma legislação extremamente punitivista, que dá poder excessivo aos magistrados, permitindo-lhes agir como o ministro, que se fixa como condutor universal de casos (como vítima, investigador e julgador – a quem rebate, lembramos que a imparcialidade vem também da aparência), atua de ofício, cerceia a defesa, mantém prazos ínfimos e suprime sustentações orais. Isso tudo, pasmem, a lei permite de alguma forma.
O problema real vai além de Moraes. Em todos os fóruns do país, abusos semelhantes se repetem. Muitos falam da Débora cabeleireira, mas ninguém fala da Maria Preta, presa por furto de xampu. Grita-se por uns, silencia-se por outros. O garantismo não pode ser de ocasião.
Quem ignora a violência contra negros e pobres – a clientela preferencial do sistema – e aplaude juízes que agem contra seus inimigos está, na verdade, endossando as violações de hoje. Como diz o ditado: pau que bate em Chico, bate em Francisco.
Para quem reclama hoje, sinto dizer: a culpa não é só de Moraes. É das leis penais brasileiras. Há décadas a doutrina pede reformas e um Código de Processo Penal (CPP) que cumpra a Constituição. Não para A ou B, mas para todos.
O país precisa urgentemente de um novo CPP que separe claramente o juiz que julga do juiz que participa da investigação (em todas as instâncias), que efetive a imparcialidade, que estabeleça recursos contra abusos, que respeite direitos e garantias, seguindo o devido processo legal independente de partido ou classe social.
Cabe ao Congresso mudar as leis. E a nós, exigir essa mudança. O problema é nosso e também diz respeito à nossa soberania. Até lá, dizemos: se você acha o juiz de hoje ruim, espere o de amanhã.