Tem causado intenso debate a decisão do ministro Flávio Dino que deferiu medida liminar para declarar a ineficácia de decisão proferida pela Justiça inglesa que pretendia obrigar o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) a desistir de um pedido liminar formulado no âmbito da ADPF 1.178/DF (na qual se discute a possibilidade de municípios brasileiros atingidos pelo rompimento da barragem de Mariana litigarem no exterior).
Segundo o próprio ministro, sua decisão se dá num contexto de “fortalecimento de ondas de imposição de força de algumas nações sobre outras” — uma alusão às medidas recentemente adotadas pelo governo dos Estados Unidos contra o Brasil e, especificamente, contra ministros do STF.
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Apesar de o noticiário atual estar concentrado nos desdobramentos relacionados à diplomacia norte-americana, a decisão da Justiça inglesa neste caso evoca uma discussão muito mais antiga do direito inglês: o alcance das chamadas anti-suit injunctions (“ordens antiprocesso”, em tradução livre), especialmente porque elas desafiam as noções tradicionais de soberania e territorialidade.
A bem da verdade, o ministro Dino foi além da análise da decisão inglesa no caso de Mariana. De forma abrangente, ele determinou que “leis estrangeiras, atos administrativos, ordens executivas e diplomas similares” não produzem efeitos sobre quem atua no país e que tal produção de efeitos dependeria de ordem judicial ou de “previsão expressa em normas integrantes do Direito Interno do Brasil”. Essa segunda parte da decisão parece ter, com razão, trazido maior preocupação.
O ministro Dino questiona se decisões estrangeiras podem produzir efeitos em relação a “pessoas jurídicas de Direito Público e de Direito Privado sediadas e/ou com atuação no Brasil” e conclui negativamente com base em dois fundamentos: soberania e territorialidade. Sua decisão tem duas “pernas”, que precisam ser analisadas separadamente.
Comecemos a análise pelo argumento da territorialidade. Sob esse argumento, a decisão pretende regular todas as situações em que se esteja diante de leis, decisões ou atos oriundos de jurisdição estrangeira. Sob o fundamento de que o ordenamento brasileiro se baseia no princípio da territorialidade, o ministro Dino afirmou que, como regra, esses atos não produzem efeitos no país, salvo expressa previsão legal ou decisão judicial. Na prática, a própria decisão reconhece ter criado uma presunção de “ineficácia de tais leis, atos e sentenças emanadas de país estrangeiro”.
Contudo, o art. 17 da LINDB, invocado pela decisão, não parece ser capaz de justificar essa interpretação. O dispositivo restringe a ineficácia dos atos estrangeiros às situações em que “ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes”.
Ou seja, a presunção legal parece ser justamente de que os atos oriundos de outros países poderão ser eficazes no Brasil e que somente terão seus efeitos bloqueados nas limitadas hipóteses previstas na lei. A decisão do STF subverte essa lógica e, na prática, impede que qualquer pessoa cumpra, inclusive voluntariamente, comandos emanados de jurisdição estrangeira.
Além disso, a menção a ser a extraterritorialidade “absolutamente excepcional” ignora que a utilização do princípio da territorialidade como paradigma para a compreensão da soberania tem se mostrado cada vez mais distante de uma realidade fática em que os fluxos transnacionais de pessoas, bens, serviços, capitais e ideias ignoram fronteiras. Essas interações dependem e demandam que partes brasileiras reconheçam, como regra, a eficácia de normas e atos praticados no exterior.
A segunda “perna” da decisão está baseada na soberania e diz respeito aos fatos discutidos na ADPF, em que está em questão a anti-suit injunction proferida pela justiça inglesa. Anti-suit injunctions são uma das ferramentas mais poderosas de que juízes ingleses dispõem para lidar com conflitos entre jurisdições. Elas são decisões de natureza mandamental proferidas contra uma parte ordenando-a a não iniciar uma demanda em outro foro, ou então determinando que desista de eventual demanda já iniciada, sob pena de sanções, comumente severas, incluindo, em alguns casos, prisão. São bastante comuns na Inglaterra e em outros países da common law.
Não é preciso aprofundar muito o instituto para logo perceber o porquê de ele ser extremamente polêmico e controverso. Apesar de a anti-suit injunction ser tecnicamente dirigida a uma parte que está ao alcance da jurisdição de quem a concede, e não à autoridade estrangeira que teria poder para julgar o processo afetado, ela claramente impacta o exercício da função jurisdicional pelos tribunais estrangeiros. Afinal, retira deles a possibilidade de conhecer determinado litígio, que, em muitos casos, eles próprios já se reconheceram competentes para julgar.
Portanto, uma anti-suit injunction é um meio pelo qual um Estado exerce a sua jurisdição adjudicatória (uma manifestação de sua soberania) para determinar a modificação de uma situação de fato fora de seu território — portanto, de forma extraterritorial —, afetando o exercício territorial da jurisdição adjudicatória de um outro Estado (logo, de sua soberania).
As hipóteses mais comuns de anti-suit injunction na Inglaterra são para fazer valer cláusulas compromissórias ou de eleição de foro (o principal precedente é conhecido como Angelic Grace). Esses casos costumam ser mais fáceis pois, em princípio, as próprias partes acordaram que apenas um foro é competente para julgar suas disputas. Bastaria ao juiz fazer valer essa manifestação prévia de vontade.
O caso de Mariana não é “fácil” como esses, pois não há um único foro competente para decidir a demanda. A regra no direito internacional é a concorrência de jurisdições, o que significa reconhecer que pode haver mais de um foro competente para julgar a mesma causa. Nesses casos, os tribunais ingleses costumam ser mais criteriosos ao conceder anti-suit injunctions e exigem, entre outros, a demonstração de que a ação estrangeira seja “vexatória” ou “opressiva” (como definido no caso Aérospatiale).
Há um bom argumento para se entender que o pedido liminar do Ibram na ADPF não entra nessas categorias. Nela, o STF foi chamado a decidir os contornos da autonomia municipal, o que decorre diretamente do pacto federativo. Não parece haver dúvida de que compete ao STF, enquanto encarregado de dar a palavra final sobre a interpretação da Constituição brasileira, decidir se os municípios podem propor uma ação no exterior — o que é um pressuposto à própria existência da ação inglesa em relação aos municípios autores.
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Nesse contexto, é apenas natural que o STF possa deferir medidas de natureza cautelar que entenda adequadas à proteção do resultado de seu futuro julgamento. Além disso, sendo a ADPF um processo de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, é difícil argumentar que o exercício, pelo STF, de sua competência natural sobre matéria constitucional seria vexatório ou opressivo aos municípios que ajuizaram ação na Inglaterra.
O debate sobre a anti-suit injunction inglesa, diretamente relacionado ao objeto da ADPF, acabou eclipsado pelas decisões polêmicas dos Estados Unidos contra o Brasil. A interpretação dada ao art. 17 da LINDB em resposta a essa pressão externa parece ter sido extrema e ignora o dia a dia de quem tem interface com o exterior, criando mais problemas do que pretende resolver. A proteção da soberania e ordem pública nacionais não deve ser incompatível com a inserção do Brasil em um mundo globalizado.