Inegável que a assistência à saúde como um todo carece de transformação, focada em um binômio sustentabilidade e melhoria do cuidado.
Para a saúde suplementar, as iniciativas são bastante interessantes envolvendo aplicação de novas tecnologias para aperfeiçoamento da gestão de saúde e novas formas de atração de beneficiários para os planos de saúde. Os números mostram que, desde a crise econômica de 2013, esse mercado não apresenta o mesmo crescimento que experimentou até a publicação do marco regulatório em 1998. E uma das propostas indicadas como viável para atrair novos beneficiários é a diversificação de produtos a serem oferecidos ao mercado pelas operadoras.
Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor
Nesse ponto, ganhou relevância a existência do mercado de cartões de desconto. A principal diferença entre os produtos cartão de desconto e planos de saúde é a alocação do risco.
Enquanto no plano de saúde o risco da atividade é da operadora, no cartão de desconto o risco da contratação é do paciente. Isso porque o plano de saúde paga diretamente o prestador por conta e ordem do beneficiário, conferindo direito a cobertura dos atendimentos sem limite financeiro. Em outras palavras, o beneficiário paga a mensalidade do plano de saúde e a operadora paga ao prestador diretamente, assumindo o risco de uma utilização do beneficiário em valor superior à contraprestação mensal (que é calculada por meio de atuários para comportar tais situações).
Por seu turno, no cartão de desconto, o consumidor paga uma taxa de administração pela conveniência de ter acesso a descontos por diversos serviços – não somente em assistência a saúde. A administradora do cartão oferece uma listagem de parceiros que prestam serviços com desconto aos afiliados ao cartão.
O atendimento é pago diretamente pelo consumidor ao prestador do serviço (no caso de saúde, um profissional de saúde), utilizando do desconto contratado. Não há garantia de continuidade de atendimento – a não ser que o consumidor pague pelos novos atendimentos – e o limite do atendimento é a capacidade financeira do paciente.
A decisão de 2 de outubro de 2023 proferida pelo ministro Herman Benjamin, da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no acórdão Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial (AgInt no AREsp) n. 2.183.704/SP, entendeu que a ANS deveria regular e fiscalizar os cartões de descontos.
O entendimento, porém, não parece considerar a piedade central da Lei 9.656/1998: a alocação do risco financeiro. A tese está calcada no argumento de tais produtos se assemelharem aos planos privados de assistência à saúde com coparticipação, tornando irrelevante o fato de os pagamentos serem realizados diretamente pelos usuários. Até então a posição predominante era sobre a não equiparação entre cartões e planos, deixando a regulamentação pela ANS exclusivamente para os planos de saúde.
No último dia 13 de agosto foi iniciado o julgamento dos embargos de declaração opostos pela ANS frente a tal decisão, com conclusão prevista para esta quarta-feira (20/8). Caso mantida a decisão – o que parece ser a tendência –, poderemos vivenciar uma mudança da forma como compreendemos o mercado de saúde.
Entender que todo serviço oferecido por meio de uma rede de prestadores passa a ser caracterizado como plano de saúde é, no mínimo, peculiar. Empresas que oferecem algum tipo de assistência à saúde de forma coletivizada poderão ser equiparadas a planos de saúde, o que pode impactar profundamente a oferta de cuidado, especialmente em um momento em que modelos de cuidado integral ganham destaque. (em que o beneficiário recebe atendimento de diversas especialidades para tratamento de seu quadro de saúde, como em centros de oncologia, com médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, entre outros).
A Lei 9.656/1998 já previu tal cenário, determinando que estarão sujeitas à ANS as entidades que ofereçam rede credenciada, desde que também apresentem a garantia de cobertura financeira de riscos de assistência à saúde. Ou seja, não se destaca o risco assumido pela operadora em nenhum momento. Em sentido contrário, sem a existência do risco no exercício da atividade, não há caracterização de plano de saúde e, por isso, não há ingerência da ANS.
Quando a existência do risco assumido pela operadora não mais caracteriza a operação de plano de saúde, é possível vislumbrar um cenário de desinteresse no oferecimento do plano de saúde no modelo atual, passando a uma predominância dos produtos em que o risco está majoritamente alocado no consumidor, um quadro similar ao que foi visto quando do desinteresse comercial pela comercialização de produtos individuais.
Vale questionar, diante da decisão e dos possíveis impactos, qual seria o interesse público a ser tutelado no problema posto, já que o risco passa a ser integralmente custeado pelo paciente/consumidor. Parece que, usando a bandeira da vulnerabilidade do consumidor, está se propondo uma mudança que poderá criar incentivos para que um produto viável (planos de saúde) tenha sua comercialização reduzida.
Claro que a regulação pode ser exercida por múltiplas modalidades, até mesmo uma em que se proponha a meramente colheita de informação para compreensão do funcionamento do mercado de cartões. Se, por um lado, a intenção de trazer mais transparência e proteger o consumidor de práticas abusivas é nobre e compreensível, por outro, o meio escolhido – a equiparação pura e simples – pode gerar mais insegurança do que benefícios, ao ignorar a estrutura fundamental de risco que define o setor.
Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA
Não se defende estabelecer que um produto seja superior ao outro, pois são consideravelmente diferentes entre si. O presente texto pretende abrir uma reflexão sobre os caminhos que a sociedade deseja para a saúde privada, no que concerne a proteção do consumidor e estímulo à concorrência. O pensando deve ser direcionado para o macro, externando a preocupação com a segurança jurídica e a sustentabilidade do sistema como um todo, não apenas com um modelo de negócio.
Voltando à ideia de abertura, enquanto todos esperavam que a revolução na saúde seria impulsionada pelos avanços na inovação tecnológica, a verdade é que a revolução na saúde virá pela caneta do magistrado. A precisa análise jurídica será o melhor insumo para a tomada de decisão neste momento de transformação. Há somente uma certeza: não existe um dia sem emoção para quem atua nesse mercado.