Henry John Temple, 3º Visconde de Palmerston (1784-1865), foi um dos líderes britânicos mais influentes do século 19. Sua personalidade era marcada pelo intervencionismo assertivo, pela defesa intransigente dos interesses nacionais e por uma diplomacia muitas vezes confrontadora — postura que lhe rendeu popularidade entre o público britânico e desconfiança nas cortes europeias. Palmerston acreditava que o Reino Unido deveria proteger seus cidadãos e interesses com energia e, se necessário, com o uso da força.
Donald Trump, por sua vez, exibe uma personalidade que ecoa vários desses traços. Ambos partilham um estilo combativo, nacionalista e polarizador. Trump também prioriza o interesse nacional, mesmo às custas de normas diplomáticas tradicionais ou da cooperação multilateral. Sua retórica agressiva, o uso de sanções como forma de pressão política e a centralização das decisões reforçam a comparação com o modelo palmerstoniano.
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Contudo, enquanto Palmerston operava dentro das instituições parlamentares de uma monarquia constitucional, Trump frequentemente desafia as instituições democráticas e os limites constitucionais tradicionais dos Estados Unidos.
No auge do Segundo Reinado, em 1862, o Brasil mergulhou em uma crise diplomática com o Império Britânico, comandada por Lord Palmerston. Um naufrágio – o do navio Prince of Wales – e a prisão de marinheiros ingleses serviram de pretexto para que o enviado William D. Christie exigisse indenizações e um acordo comercial vantajoso, confrontando a honra do governo de D. Pedro II.
Avancemos para julho de 2025: em Washington, o presidente Trump invoca a defesa da liberdade de expressão de cidadãos norte‑americanos para anunciar tarifas de 50% sobre produtos brasileiros e acionar a Lei Global Magnitsky contra o ministro Alexandre de Moraes, responsável pelo julgamento do ex‑presidente Jair Bolsonaro[1]. Entre esses dois episódios distantes no tempo, há aspectos comuns: a ingerência de potências estrangeiras e a mobilização do discurso da soberania.
Contexto histórico: a Questão Christie
A controvérsia envolvendo o navio naufragado e a detenção de marinheiros britânicos não era apenas uma questão de indenizações. Em cartas agressivas ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, William D. Christie acusava o governo imperial de falta de zelo e pedia reparações, desculpas e um novo tratado comercial.
A negativa brasileira levou Londres a autorizar a Royal Navy a apreender 12 navios mercantes do Brasil em janeiro de 1863, gesto que incendiou as ruas do Rio de Janeiro. Mais que uma afronta, a manobra visava forçar o Brasil a cumprir tratados antiescravistas e abrir seu mercado.
O componente abolicionista é central. Christie tinha ordens secretas de averiguar se o tráfico de africanos havia cessado e de preparar argumentos para Londres pressionar pelo fim da escravidão. Chegou a ameaçar contratar agentes para ajuizar ações libertárias em nome dos “africanos emancipados” caso o governo não entregasse as listas desses cativos. A resposta brasileira veio na forma do decreto de 24 de setembro de 1864, que reconheceu como livres todos os africanos emancipados, marco do início da crise do regime escravista.
O conflito repercutiu na imprensa e nas praças. Caricaturas e discursos exaltavam a honra nacional, e panfletos publicados em Londres por figuras como William Henry Clark defendiam a causa brasileira. A mediação do rei Leopoldo I da Bélgica, em 1865, encerrou a disputa, mas a narrativa de defesa da soberania frente a potências “civilizadoras” ficou gravada na memória coletiva.
Trump, Magnitsky e tarifas: a ingerência de 2025
Ao tomar posse em janeiro deste ano, Trump ressuscitou o fantasma da retaliação comercial. Em julho, o Brasil virou o alvo preferencial dessa retaliação: um comunicado da Casa Branca informou que o presidente havia assinado uma ordem executiva impondo uma tarifa adicional de 40% sobre produtos brasileiros – aumento que, somado à tarifa recíproca de 10%, resultaria em um gravame de 50%[1].
A justificativa oficial alegou que o governo brasileiro representaria “uma ameaça incomum e extraordinária à segurança nacional, política externa e economia dos Estados Unidos”[1]. A medida baseou‑se na Lei de Poderes Econômicos Internacionais de Emergência (IEEPA) e declarou emergência nacional para conter práticas brasileiras consideradas lesivas a empresas e cidadãos norte‑americanos[2].
O mesmo fact sheet acusou o STF de perseguir politicamente Jair Bolsonaro e seus apoiadores[3]. Denunciou que autoridades brasileiras teriam coagido plataformas de mídia social dos EUA a entregar dados e censurar conteúdos, sob pena de multas, processos e congelamento de ativos[4].
No centro das críticas estava o ministro Alexandre de Moraes, descrito como responsável por centenas de ordens de censura e pela investigação criminal de um residente dos EUA[5]. A ordem estabeleceu exceções para cerca de 700 mercadorias descritas no Annex I e previu que produtos embarcados antes de 6 de agosto e desembarcados até 5 de outubro seriam poupados[6].
As punições não ficaram restritas ao comércio. No mesmo dia, o Departamento do Tesouro, via OFAC, incluiu Moraes na lista de sanções da Lei Global Magnitsky. Segundo o comunicado oficial, o ministro teria autorizado detenções arbitrárias e suprimido a liberdade de expressão[7].
O secretário do Tesouro, Scott Bessent, afirmou que Moraes comandava “uma campanha opressiva de censura” envolvendo jornalistas, políticos e empresas de mídia[8]. A designação autorizou o bloqueio de ativos nos EUA e proibiu transações com o magistrado[9]. Em 18 de julho, o Departamento de Estado já havia revogado os vistos de Moraes e familiares[10].
Paralelos históricos e implicações
Distantes no tempo, mas próximos em estrutura, os dois episódios mostram como grandes potências recorrem a argumentos morais para legitimar pressões econômicas. Em 1863, a abolição do tráfico e a proteção de súditos britânicos serviram de bandeira para Londres reivindicar compensações e forçar um tratado comercial favorável. Em 2025, a defesa da liberdade de expressão é invocada pelos Estados Unidos para justificar sanções e tarifas.
Nos dois casos, os incidentes (um naufrágio e um julgamento) aparecem como pretextos para agendas mais amplas: a Grã‑Bretanha queria assegurar a hegemonia no comércio atlântico; a Casa Branca, reforçar seu programa protecionista e agradar sua base eleitoral[1].
As reações internas também dialogam. No século 19, a imprensa, os sermões e as reuniões em tavernas exaltavam a honra nacional e denunciavam a arrogância britânica; o deputado paraibano Antônio Nicolau de Barros, por exemplo, conclamou o povo à resistência. Hoje, a medida do governo Trump uniu setores díspares em defesa da soberania: até críticos do ministro Moraes condenaram a interferência norte‑americana. Até mesmo setores conservadores criticaram as tarifas e passaram a defender a soberania nacional, num raro momento de unidade
Contudo, há diferenças essenciais. Em 1863 o Brasil era uma monarquia escravista sujeita a pressões morais legítimas contra o tráfico; as ameaças britânicas ajudaram, ainda que indiretamente, a impulsionar o movimento abolicionista.
Em 2025, a crítica americana recai sobre decisões de um tribunal de um país democrático, e a Lei Magnitsky é vista por especialistas como instrumento político questionável. Ademais, a Inglaterra de então defendia o livre‑comércio, enquanto a Casa Branca de Trump utiliza tarifas protecionistas, invertendo discursos históricos.
Ambos os casos revelam, por fim, como a pauta dos direitos humanos pode ser instrumentalizada. O Império britânico condenava o tráfico ao mesmo tempo em que mantinha vasto sistema colonial; o governo norte‑americano, por sua vez, critica supostos abusos do STF enquanto enfrenta contestações internas por cercear liberdades civis. Esse paradoxo reforça a desconfiança brasileira quanto às verdadeiras motivações das potências.
Por que importa
O caso Christie mostra que a bandeira da soberania pode tanto proteger um país de abusos externos quanto mascarar dilemas internos. À época, a retórica do orgulho nacional convivia com o sistema escravista; a pressão britânica e a mobilização de abolicionistas contribuíram para quebrar essa contradição.
Hoje, o embate com os Estados Unidos expõe a fragilidade das regras multilaterais e lembra que medidas unilaterais tendem a gerar reação. A designação de um magistrado por supostos abusos de direitos humanos levanta dúvidas sobre o uso da Lei Magnitsky[7], enquanto tarifas de 50 % atingem produtores e consumidores de ambos os lados.
Ao mesmo tempo, é legítimo debater se o STF brasileiro tem respeitado plenamente o devido processo legal e a liberdade de expressão. O desafio é conciliar defesa da autonomia com compromisso com direitos humanos, evitando que críticas externas se convertam em arma política.
Conclusão
A comparação entre a Questão Christie e as medidas adotadas pelo governo Trump revela que o Brasil continua a lidar com dilemas de soberania, comércio e direitos humanos. Na década de 1860, a Grã‑Bretanha buscava afirmar sua hegemonia comercial e moral, enquanto o Brasil tentava preservar sua honra e ao mesmo tempo iniciava, ainda que timidamente, o caminho da abolição.
Em 2025, o governo norte‑americano, sob a bandeira de proteger a liberdade de expressão e punir abusos judiciais fora de sua jurisdição, lança mão de tarifas e sanções que impactam a economia brasileira e tensionam as relações bilaterais[1][7]. A reação brasileira, marcada pelo apelo à soberania e pelo repúdio à ingerência, ecoa a resistência ao ultimato de Christie, evidenciando a permanência de um imaginário histórico em que honra nacional e independência são valores fundamentais.
Essa análise sugere que, para além de defender interesses imediatos, o Brasil deve fortalecer suas instituições, garantir a proteção de direitos civis e dialogar com a comunidade internacional em pé de igualdade. Lembrar a Questão Christie não significa rejeitar críticas ou ignorar abusos internos, mas sim compreender que pressões externas podem ser motivadas por agendas estratégicas. A democracia brasileira precisa combinar firmeza na defesa da soberania com compromisso efetivo na proteção dos direitos humanos, evitando ser refém de potências estrangeiras.
RÉ, Henrique Antonio. Um agente do Império brasileiro em Londres: William Henry Clark e o fim da política da escravidão saquarema. Antíteses, [S.l.], v. 11, n. 22, p. 727–748, jul./dez. 2018. DOI: 10.5433/1984‑3356.2018v11n22p727. Disponível em: https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/34058. Acesso em: 2 ago. 2025.
EISELE, Ines. Outrage in Brazil as Donald Trump threatens tariffs of 50%. Deutsche Welle, Bonn, 11 jul. 2025. Disponível em: https://www.dw.com/en/outrage-in-brazil-as-trump-threatens-50-tariff-on-imports/a-73244289. Acesso em: 1 ago. 2025.
GRAHAM, Richard. Os fundamentos da ruptura de relações diplomáticas entre o Brasil e a Grã‑Bretanha em 1863: “A Questão Christie”. Revista de História, São Paulo, v. 24, n. 49, p. 117‑138, mar. 1962. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316‑9141.rh.1962.121593. Disponível em: https://revistas.usp.br/revhistoria/article/view/121593. Acesso em: 2 ago. 2025.
PALMERSTON, Henry John Temple. Encyclopaedia Britannica. Disponível em: <https://www.britannica.com/biography/Henry-John-Temple-3rd-viscount-Palmerston>. Acesso em: 2 ago. 2025.
UNITED STATES. DEPARTMENT OF THE TREASURY. Treasury sanctions Alexandre de Moraes under Global Magnitsky Act. Washington, D.C., 30 jul. 2025. Disponível em: https://home.treasury.gov/news/press-releases/sb0211. Acesso em: 1 ago. 2025.
UNITED STATES. THE WHITE HOUSE. Fact Sheet: President Donald J. Trump Addresses Threats to the United States from the Government of Brazil. Washington, D.C., 30 jul. 2025. Disponível em: https://www.whitehouse.gov/fact-sheets/2025/07/fact-sheet-president-donald-j-trump-addresses-threats-to-the-united-states-from-the-government-of-brazil/. Acesso em: 1 ago. 2025.
YOUSSEF, Alain El. Questão Christie em perspectiva global: pressão britânica, Guerra Civil norte‑americana e o início da crise da escravidão brasileira (1860‑1864). Revista de História (São Paulo), São Paulo, n. 177, p. 1–26, 2018. DOI: 10.11606/issn.2316‑9141.rh.2018.140977. Disponível em: https://revistas.usp.br/revhistoria/article/view/140977. Acesso em: 2 ago. 2025.
[1] [2] [3] [4] [5] Fact Sheet: President Donald J. Trump Addresses Threats to the United States from the Government of Brazil – The White House: https://www.whitehouse.gov/fact-sheets/2025/07/fact-sheet-president-donald-j-trump-addresses-threats-to-the-united-states-from-the-government-of-brazil/
[6] Trump 2.0 tariff tracker | Trade Compliance Resource Hub: https://www.tradecomplianceresourcehub.com/2025/07/31/trump-2-0-tariff-tracker/
[7] [8] [9] [10] Treasury Sanctions Alexandre de Moraes | U.S. Department of the Treasury: https://home.treasury.gov/news/press-releases/sb0211