O setor elétrico brasileiro está prestes a passar por relevantes mudanças decorrentes da Medida Provisória (MP) 1.300/2025. A norma procura reduzir as desigualdades sociais, com isenção da tarifa de energia para famílias de baixa renda, e tem ainda o objetivo de oferecer maior liberdade de escolha para os consumidores. No entanto, a medida pode ampliar encargos sobre consumidores de alta tensão – além de comprometer a competitividade durante o processo de reindustrialização do país.
“O texto da MP, ao tentar corrigir algumas dessas assimetrias, incorre no risco de gerar novas injustiças, sobretudo ao redistribuir encargos sem reformar de fato a estrutura que os produz. Em vez de simplesmente deslocar a carga de um grupo para outro, deveríamos estar debatendo a natureza e o volume desses encargos”, afirma Jean Paul Prates, ex-senador da República, ex-presidente da Petrobras e atual chairman do Centro de Estratégias em Recursos Naturais e Energia (Cerne).
Em tramitação no Congresso Nacional desde julho deste ano, a medida provisória propõe redistribuir os custos da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) de forma a estender a isenção ou descontos na conta de luz para os cidadãos brasileiros. A CDE, criada pela Lei 10.438/2002, é um fundo setorial de aporte de consumidores privados, administrado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). De acordo com o Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO), ela dá subsídios a fontes incentivadas, programas sociais e políticas públicas de energia.
Aplicada pela Aneel, a Tarifa Social de Energia Elétrica existe desde 2022, com o propósito de reduzir o valor pago pela eletricidade por consumidores de baixa renda. A depender do consumo mensal do domicílio, o consumidor pode receber uma isenção completa ou um desconto no valor da conta de luz.
A Nova Tarifa Social prevê gratuidade no fornecimento de energia elétrica para consumidores de famílias inscritas no Cadastro Único (CadÚnico), com renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa. O consumo máximo do domicílio por mês deve ser de 80 quilowatts-hora (kWh).
Este conteúdo faz parte do Joule, editoria especial com matérias e um podcast especial do setor de energia do JOTA, feito em parceria com o Instituto Brasileiro de Transição Energética (Inté).
O desconto também é concedido a pessoas com deficiência e idosos inscritos no Benefício de Prestação Continuada (BPC), além de famílias indígenas e quilombolas registradas no Cadastro Único (CadÚnico). Para esses grupos, a cobrança só ocorre se o consumo ultrapassar o limite mensal de 80 kWh.
Para o deputado federal Carlos Veras (PT-PE), vice-presidente de Assuntos Sociais da Frente Parlamentar de Energia, a proposta evidencia a preocupação do Congresso Nacional com a ampliação do acesso à energia em regiões mais vulneráveis e com a promoção de uma transição energética justa e inclusiva, especialmente por meio de ações estruturantes e de longo prazo, como o programa Luz do Povo. “Isso mostra compromisso com o enfrentamento à pobreza energética, a mitigação das mudanças climáticas e a justiça tarifária, buscando garantir um ambiente de inclusão ao uso da energia elétrica com efeitos positivos para a saúde, educação, segurança alimentar e o desenvolvimento socioeconômico.”
Já as famílias inscritas no CadÚnico com renda mensal de até um salário mínimo por pessoa e consumo de até 120 kWh ao mês, terão um desconto na conta de luz, com isenção do pagamento da CDE, um desconto de 12% proporcional à porcentagem do encargo.
O Ministério de Minas e Energia (MME) prevê que 115 milhões de consumidores serão beneficiados, seja pela isenção da tarifa ou pela redução na conta de luz. O custo da medida provisória será de responsabilidade da CDE.
O texto da norma também prevê outras transformações, como mudanças no mercado de livre energia, descontos tarifários para fontes incentivadas e maior transparência na cobrança dos encargos. Contudo, especialistas do setor apontam que a MP não enfrenta a raiz do problema, que está no volume e na natureza desses subsídios.
“A MP 1300 pode gerar insegurança regulatória para decisões industriais de médio e longo prazo, especialmente para grandes consumidores, devido às mudanças propostas no mercado livre de energia e na regulação de tarifas e subsídios”, opina André Passos Cordeiro, presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim).
Impactos diretos sobre a indústria
Atualmente, os custos da Tarifa Social são repassados às contas de luz por meio de um sistema de “subsídios cruzados”, em que determinados grupos de consumidores pagam mais para reduzir a tarifa de outros. Dessa forma, a MP divide esses encargos entre diferentes classes de consumidores – inclusive os de alta tensão.
Os consumidores de alta tensão englobam a categoria de setores industriais intensivos em energia, como a indústria química, siderurgia e papel e celulose. Esses são os que mais devem sentir os efeitos das mudanças propostas pela MP 1300/25. Isso porque a redistribuição da CDE tende a aumentar ainda mais a carga de encargos sobre quem já responde por grande parte do financiamento do fundo setorial.
Para Prates, a preocupação é legítima: “O setor produtivo já arca com uma das energias mais caras do mundo. Não por causa do custo da geração, que é competitivo, mas pela carga excessiva de encargos e subsídios embutidos na tarifa. A MP, ao redistribuir parcialmente esses custos, pode agravar essa situação ao aumentar ainda mais o peso sobre quem já financia a maior parte da CDE.”
A indústria química, por exemplo, é uma das mais afetadas, segundo Cordeiro, da Abiquim. “A redistribuição da CDE e a reforma do setor elétrico podem levar a um aumento significativo nos custos de energia para consumidores de alta tensão, especialmente para a indústria, devido à expansão da tarifa social e à redução de descontos em fontes incentivadas”, diz. “Para atrair novos investimentos é essencial reduzir os custos atuais de produção e voltar a operar a plena carga. A medida vai na contramão”, complementa.
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Além da pressão imediata sobre a fatura de energia, há receio de perda de competitividade frente a competidores internacionais que operam com custos energéticos muito menores ou recebem incentivos governamentais. “A indústria precisa de previsibilidade, competitividade e energia barata. A transição energética não pode ser feita à custa da produção nacional”, resume Prates.
Para os especialistas, há a necessidade de separar a tarifa técnica da tarifa pública, de forma a possibilitar uma maior transparência da CDE. Também opinam a favor do fim dos repasses cruzados, com uma definição de fonte orçamentária para programas sociais.
“Enquanto continuarmos embutindo políticas setoriais nas tarifas de energia, estaremos perpetuando um modelo opaco e regressivo. A CDE, neste formato, funciona como um orçamento paralelo do setor elétrico”, comenta Prates.
Cordeiro, por sua vez, pontua as críticas sobre a lógica ao modelo subsidiário: “Subsídios cruzados têm sido criticados por gerar injustiças e distorções no mercado. A tarifa de energia para alguns consumidores é artificialmente baixa, enquanto outros pagam mais para compensar essa diferença”, analisa Cordeiro, da Abiquim.
Tramitação no Congresso Nacional
A MP está sob análise de uma Comissão Mista, com mais de 600 emendas apresentadas para alteração da norma. A reunião de instalação dessa comissão está prevista para o dia 12 de agosto. Entre as prioridades, destaca-se a necessidade de limitar os gastos vinculados à CDE e transferir para o Tesouro Nacional o custeio integral da Tarifa Social de Energia Elétrica, hoje rateada entre todos os consumidores.
Para Cordeiro, presidente-executivo da Abiquim: “Limitar os gastos relacionados à CDE seria uma importante mudança, além de que os gastos com a tarifa social sejam integralmente pagos pelo Tesouro Nacional e não pelos consumidores industriais.”
Mais do que uma disputa sobre quem arca com a conta, o debate em torno da MP 1300 escancara a urgência de reformular o modelo tarifário brasileiro, buscando um equilíbrio real entre políticas sociais, expansão das fontes renováveis e competitividade industrial. Na avaliação de Jean Paul Prates, “em um momento em que o Brasil discute seriamente sua reindustrialização, elevar custos energéticos pode ser um tiro no pé”, finaliza.