Como pensar sobre IA para o jurídico?

O título deste artigo remete ao novo livro de Richard Susskind, How to Think About AI: A Guide for the Perplexed.[1] Lançado no 1º semestre deste ano, o autor reúne mais de 40 anos de estudo sobre inteligência artificial aplicada ao mundo jurídico perpassando a história da tecnologia, os cenários possíveis para o seu futuro e até mesmo a previsão de que a década de 2030 será algo totalmente diferente do que conhecemos hoje, justamente pelas novas tecnologias que surgirão nos próximos anos.

Entre reflexões sobre a regulamentação da IA para cada realidade normativa dos países ao redor do globo, os desafios éticos e morais da utilização da tecnologia e vários questionamentos que colocam o leitor em um espiral de indagações, contextualizamos a obra com a realidade que encontramos no cenário jurídico corporativo brasileiro: em todas as empresas só o que se fala é de inteligência artificial.

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Seja por uma pressão do board; da liderança executiva; do time de tecnologia; ou até mesmo quando vem de um time jurídico mais inovador. Muitas vezes, a pressão é pelo uso da tecnologia com a promessa de reduzir horas operacionais de seres humanos, com uma vontade genuína de busca pela eficiência, o que naturalmente nos leva a pensar: como essa demanda de IA está chegando nessas organizações? O pedido faz sentido e é pautado em eficiência, ou só se quer fazer parte do hype?

Observamos que, agora, cada pessoa agora quer uma IA para chamar de sua. Ter um agente para chamar de seu é a nova moda dos anos 2025, uma tendência gerada para acompanhar o Labubu, o Bobbie Goods e se você prefere referências culinárias, o morango do amor ou até o [quase esquecido] recheio de pistache. A febre pela adoção de uma IA faz inveja ao apelo do infantil Tamagotchi dos anos 90, o Blackberry nos anos 2000, o iPhone em 2007. Chegou ao ponto de termos metas quantitativas que as organizações estão colocando para seus colaboradores. Até disputas entre áreas, de qual tem mais agente de IA.

De longe, até parece uma boa ideia para acelerar a adoção de tecnologia e de inovação. Mas quando uma inovação acontece só para seguir o protocolo de uma tendência… Será que é inovadora mesmo? Resolve de fato uma dor? Ou seria somente o cumprimento de um “check” para abraçar um modismo?

Especialmente agora que as áreas e os colaboradores ainda não têm acesso irrestrito dessas soluções, é importante refletirmos. Um projeto que crie um agente de IA de verdade é caro, envolve horas de desenvolvimento e um investimento significativo por parte da organização.

A realidade não é tão simples como criar um ppt ou um link de uma reunião; é algo tão custoso que nas grandes organizações, a área de TI e de Governança de Dados está trabalhando em projetos piloto com usuários chave justamente pelo valor por usuário ainda ser alto. Com o tempo certamente ficará mais barato, mas ainda estamos no começo da curva.

Desta forma, antes de sair adotando, automatizando ou investindo em ferramentas de IA, é preciso dar um passo atrás: repensar a forma como organizamos o trabalho jurídico. A IA não é apenas mais uma tecnologia; ela representa uma mudança estrutural na forma de prestar serviços jurídicos.

E mudanças estruturais exigem também uma mudança na forma de pensar. Neste artigo, propomos um pequeno manual prático para guiar times jurídicos amplos e os focados em Legal Operations nessa nova jornada.

Menos hype, mais estratégia.

1) Comece pelas perguntas certas

É natural sentir um FOMO (fear of missing out, ou “medo de ficar para trás”) quando se fala em inteligência artificial. Em outro artigo já foi comentado que buscar inovação a qualquer custo pode ser tão perigoso quanto ficar parado no tempo. No contexto de Legal Ops e transformação jurídica, toda iniciativa de tecnologia deve servir a um propósito estratégico claro. Não é tecnologia pela tecnologia, é a tecnologia como um serviço, como um caminho.

Por isso, antes de decidir onde e como usar IA nos fluxos da sua área, questione-se:

Qual problema, de fato, estamos tentando resolver?
Quem será impactado por essa tecnologia?
Realmente preciso de IA nesse fluxo ou uma automação simples ou robótica (o famoso RPA) pode resolver?

Refletir sobre IA é refletir sobre decisões, eficiência e impacto. Em outras palavras, foque primeiro no porquê e para quê, antes de sair discutindo o como.

2) Orquestre agentes, não apenas tarefas

Muitas equipes caem na armadilha de tentar usar a IA como um Google 2.0, para centralizar pesquisas, ter respostas imediatas e criar/revisar textos. Mas a IA permite ir muito além: é possível orquestrar um conjunto de agentes inteligentes trabalhando em sintonia, quase como um escritório de advocacia interno automatizado.

E agora, com a popularização do GPT 5 que promete organizar verdadeiras tarefas complexas podendo até mesmo estar integrado ao seu calendário, a realidade muda completamente. Bem, imagine a seguinte orquestração:

Uma persona ‘A’ recebe e entende a demanda das áreas
Outra ‘B’ produz o documento/ resposta com base em playbooks internos
Outra ‘C’ faz validação de riscos
Outra ‘D’ traduz do juridiquês para a para as áreas de negócio
Outra ‘E’ envia para a área certa, documenta a entrega e atualiza o sistema

Agora pensa que

Persona A pode ser um analista jurídico
Persona B, pode ser advogado júnior
Persona C, um pleno
Persona D, um sênior
E, finalmente, a Persona E, a controladoria jurídica

Você passa a ter assistentes virtuais para cada etapa do fluxo, liberando os profissionais para as atividades em que o julgamento humano e a estratégia são insubstituíveis. E mais: todas essas pessoas podem ser resumidas em algumas linhas de um prompt bem trabalho, com códigos estruturados que indiquem revisão e o que fazer em caso de erro.

Refletir sobre possibilidades, entender os possíveis gatilhos de erro e o que fazer sobre suas ocorrências, delimitar fronteiras mediante a uma revisão humana atenta aos resultados e, sobretudo, uma aprovação com o olhar atento do responsável pela proteção dos dados da organização… Fará a diferença nessa orquestra. Essas ações unidas traduzem a melodia necessária para a plateia aplaudir de forma consistente e verdadeira.

3) Adote uma mentalidade de produto

Implementar uma IA não deve ser encarado como um projeto com início, meio e fim definidos. Encare a IA como um produto vivo. Isso significa que, após entrar em operação, sua solução de IA passará por evoluções contínuas e totalmente permanentes.

Ela requer backlog de melhorias, versões sucessivas, métricas de desempenho e gestão ativa no dia a dia. Em outras palavras, depois de colocar uma ferramenta inteligente para rodar, o trabalho está apenas começando: será preciso lapidá-la, atualizá-la e ajustá-la regularmente para que continue gerando valor. É um processo de monitoramento e revisão sem fim, tal qual um carro que precisa ser vistoriado com alguma frequência (só que no caso da IA, a frequência deverá ser muito maior).

Adotar essa mentalidade de produto certamente exigirá uma mudança cultural no jurídico. Em vez de entregar um projeto de tecnologia e dar a missão por encerrada, o time passa a atuar como dono de um produto beta. Permanentemente beta, algo que vai de encontro ao perfil de muito profissional jurídico, que por excelência sempre busca a perfeição.

Hoje, lidar com uma IA é justamente o oposto da excelência: o produto excelente de hoje é o obsoleto de amanhã. Portanto, isso implica priorizar demandas de usuários, dialogar com as áreas atendidas para entender onde a IA pode melhorar e acompanhar indicadores de sucesso (uso, acurácia, tempo economizado etc.), realizando ajustes constantes em uma frequência muito alta, justamente porque a segurança da informação deve ser o pilar basilar de toda a estrutura.

4) Mapeie riscos e (re)defina responsabilidades

Nenhuma iniciativa de IA está livre de riscos. Absolutamente nenhuma. E ignorá-los pode custar caro, tanto pelo aspecto reputacional, quanto pelo financeiro. Por isso, junto com a empolgação pela tecnologia deve vir uma dose saudável de governança. É fundamental ter clareza sobre pontos críticos como:

Quem vai treinar o modelo?

Quem serão os responsáveis por configurar e melhorar a IA ao longo do tempo?

Quem aprova o que será automatizado ou sugerido pela IA?

Quais respostas a máquina pode dar sozinha para os clientes internos do jurídico e quais precisam de validação humana?

Quais dados alimentarão a IA e de onde eles vêm?

Os dados são confiáveis?

Como detectar e corrigir eventuais desvios ou erros do sistema?

Existe um processo de revisão das saídas da IA e feedback para ela aprender com equívocos?

O jurídico deve atuar de maneira próxima com o time de infraestrutura de TI e de Governança de Dados da organização para pensar em melhores estruturas de como operar. Isso significa estabelecer políticas internas claras, definir limites éticos, elaborar uma matriz RASCI de responsabilidades bem definidas e assegurar conformidade com leis e regulamentos relacionados à inteligência artificial. Também implica monitorar continuamente os resultados que a IA produz, auditando suas recomendações e intervindo sempre que necessário.

Lembre-se: mesmo que o time jurídico esteja tomando decisões com auxílio da IA… Ainda são decisões do jurídico. Em última instância, se algo der errado, não adianta culpar o algoritmo – a responsabilidade recairá sobre o usuário. Portanto, trate a governança da IA com a mesma seriedade com que trata os riscos legais tradicionais. Quem conseguir unir inovação com controle eficaz de riscos vai sair na frente.

5) Dê escala ao que já funciona

A IA não substitui processos; ela os potencializa. Se um processo está mal desenhado ou é ineficiente, jogar IA em cima dele só vai amplificar o problema. Por outro lado, se você tem um fluxo que funciona bem, a tecnologia pode multiplicar sua eficiência e alcance.

Algumas aplicações de ganho rápido que vêm dando certo em algumas empresas:

Automação de cláusulas contratuais recorrentes: deixe que a IA preencha e revise cláusulas padrão – sabe aquelas que o seu playbook já prevê?
Prevenção de riscos jurídicos com base em dados históricos: usar modelos preditivos treinados em bases de processos e contratos passados para estimar, por exemplo, a probabilidade de êxito em litígios ou identificar quais casos merecem mais atenção proativa.
Extração de insights de grande volume de contratos: aplicar IA para revisar um grande repositório de contratos e apontar cláusulas fora do padrão, obrigações esquecidas, prazos críticos, etc; permitindo uma gestão contratual mais inteligente e preventiva – incluindo a base legado.

Em todos esses casos, a IA entra para turbinar algo que o jurídico já faz – só que de forma artesanal ou limitada (quando é 100% manual). Ao automatizar as partes repetitivas e operacionais, você libera a capacidade do time para as tarefas estratégicas: aquelas que demandam análise fina, negociação e criatividade jurídica.

6) Capacite seu time… a IA já está mudando a forma de trabalhar

A essa altura, já não cabe mais perguntar se vamos usar IA no Jurídico, e sim como vamos reorganizar o trabalho a partir dela. Em outras palavras: de que maneira a aplicação da inteligência artificial vai redesenhar papéis, fluxos e atividades dentro do jurídico?

Os profissionais e áreas que souberem redesenhar fluxos, reordenar tarefas e orquestrar a IA com governança e propósito estratégico sairão na frente. O Jurídico que aprender a enxergar a IA como infraestrutura – e não apenas como uma ferramenta pontual, tarefeira – atingirá um novo patamar dentro da organização.

Para entender o que isso significa, pense em uma calculadora. Ninguém duvida do resultado que ela entrega. Ninguém resolve uma conta complexa na mão só para “conferir se está certo”. A gente confia e segue em frente.

A inteligência artificial caminha para ocupar esse mesmo lugar: uma tecnologia confiável, integrada ao dia a dia, que libera tempo e energia para focarmos no que realmente importa. Ela não será apenas mais uma ferramenta entre outras, mas uma nova infraestrutura de trabalho jurídico.

Em suma, não basta comprar ferramentas de IA e esperar mágica. É preciso repensar pessoas, processos e estratégias em torno dessa nova realidade. A recompensa para quem fizer isso é grande: mais tempo para atividades estratégicas, menos retrabalho, maior alinhamento com o core business e um papel mais relevante na tomada de decisões da empresa.

Por fim, como iniciamos esse texto com uma grande referência jurídica, encerramos com uma outra referência do mundo dos negócios: Jensen Huang. Não poderia ser diferente. Ele é o cofundador da Nvidia, atualmente a empresa mais valiosa do mundo, a primeira a alcançar a marca de US$ 4 trilhões e, por produzir os chips que fazem a IA acontecer, uma das organizações mais importantes.

Ao dizer “Preparem-se para uma nova era industrial – movida não por aço e carvão, mas por dados e algoritmos”, em outras palavras, Jensen diz que a liderança atual deverá pensar. Pensar antes de automatizar, pensar como lidar com dados, pensar com foco em algoritmos e, sobretudo, pensar em como abraçar a mentalidade de protagonista para liderar – de verdade! – a transformação que a advocacia tanto precisa.

[1] Em tradução livre para o português: “Como pensar sobre IA: um guia para os perplexos”.

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