Erigida a partir de uma cosmovisão de mundo eminentemente moderna, na qual o racionalismo jusfilosófico e os movimentos constitucionalistas consolidaram as bases da limitação jurídica do poder político por meio da concepção de Estado de Direito, a teoria dos direitos fundamentais trouxe inegáveis avanços civilizacionais ao promover a ideia de que determinados direitos inerentes à dignidade própria de cada ser humano devem estar imunes à pauta política, ainda que majoritária, e possuem força irradiante e estruturante na Constituição, a ponto de compor o conteúdo funcional maior que justifica e legitima a própria existência do Estado.
Sobre essa base, direitos como dignidade da pessoa humana se tornam estruturantes nas democracias liberais. Dentre eles, intimidade, privacidade e liberdade são ícones desse modelo, enquanto expressão da autonomia individual da vontade. Da intimidade e garantia à vida privada, assegura-se a liberdade. Aliás, desde Locke do Segundo Tratado, sabe-se que a justificativa da esfera privada se dava, também, na garantia da liberdade como direito eminentemente natural, humano.
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Nessa perspectiva, trabalhava-se com um modelo de articulação entre Estado e Sociedade civil em que, de um lado, o primeiro deve garantir tais direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que, de outro, se vê impedido de violá-los. Entre particulares, ergue-se a noção de eficácia horizontal desses direitos fundamentais a fim de colocar limites nas relações humanas no próprio seio da sociedade civil (SARLET, 2008, p. 395 e ss).
Tudo parecia caminhar bem e o século 21 poderia se consolidar como a era dos direitos fundamentais em escala global. Contudo, com o advento das novas tecnologias (big data, IA, Identificação Facial, 5G, Biogenética), as possibilidades dos Estados e das corporações tecnológicas privadas de controle e domínio da população e da autonomia dos cidadãos se expandiram de maneira contundente, podendo-se vislumbrar uma sociedade de vigilância total, assentada na captação de dados e nas possibilidades de previsão e manipulação de comportamentos humanos a partir dessas informações (ZUBOFF, 2018).
Essa transformação não é superficial, mas prenuncia um novo modelo existencial para a humanidade. O que está em curso é uma revolução disruptiva e radical por sua própria natureza. Nesse trajeto, os direitos fundamentais à intimidade, à vida privada e à liberdade se veem diretamente afetados e estão em xeque.
De forma prática, parece não haver mais como garanti-los. Não do modo como as garantias foram pensadas na modernidade. E as categorias filosóficas de vida onlife e de Infosfera, cunhadas por Luciano Floridi, instrumentalizadas tecnologicamente em torno da concepção de Ambient Computing ilustram bem esse caráter disruptivo do momento atual e os desafios que ora se apresentam.
Para Floridi, após o legado de Turing, a informática e as TIC juntas proporcionaram conhecimentos científicos sem precedentes sobre realidades naturais e artificiais, exercendo uma influência tanto extrovertida como introvertida na nossa compreensão, tendo lançado uma nova luz sobre quem somos, como nos relacionamos com o mundo e uns com os outros e, consequentemente, sobre a forma como nos concebemos a nós próprios (FLORIDI, 2014, p. 110-111).
O avanço da tecnologia está transformando o mundo e tem afetado inúmeras áreas com impacto significativo, sendo possível observar uma necessária ressignificação do modo de agir e viver, de modo que para estar em determinados lugares ou acessar uma miríade de serviços é necessário ter acesso à internet[1] e estar incluído digitalmente.
Há uma abundância informacional à disposição das pessoas em uma infinidade de dispositivos eletrônicos e, como diz Floridi, à distância de um clique, em smartphones, tablets, smartwatches ou computadores (FLORIDI, 2014, p. 100).
Daí a linha que divide a vida física da vida digital é tão tênue que é possível afiançar que, nos dias atuais, os indivíduos vivem e atuam de forma híbrida, a ponto de Floridi criar um neologismo para este novo viver como uma experiência onlife, referindo-se a uma realidade hiperconectada na qual já não faz sentido perguntar se alguém está online ou offline (FLORIDI, 2014, p. 58). A experiência hiperconectada das sociedades atuais faz com que a distinção entre estar ou não conectado perca o sentido: vive-se sempre onlife (SILVA, 2023, p.19).
A experiência onlife descrita por Floridi ocorre na Infosfera[2], um ambiente que vem se transformando com a evolução tecnológica e nele as pessoas interagem umas com as outras e realizam tarefas do cotidiano. Não se trata de um ambiente virtual sustentado por um mundo genuinamente material por trás, em vez disso será o próprio mundo que será cada vez mais interpretado e entendido de forma informacional. No final desse processo de mudança, a Infosfera terá deixado de ser uma forma de se referir ao espaço da informação para ser sinônimo da própria realidade (FLORIDI, 2014, p. 64).
O avanço tecnológico transformou o modo como as pessoas vivem, se comunicam e trabalham. As novas gerações já não concebem a vida fora da Infosfera, pois é um grupo de indivíduos que nasceu em um mundo sem fios. Indivíduos das gerações anteriores assistem a Infosfera absorvendo progressivamente qualquer outra realidade existente. Sua previsão é que nas sociedades da informação, o digital está transbordando para o analógico e se fundindo com ele (FLORIDI, 2007, p. 6), fazendo com que o limiar entre online e offline em breve desaparecerá e que provavelmente somos a última geração a experimentar uma diferença clara entre o que é online e o que é onlife (FLORIDI, 2007, p. 1, 9).
Assim, da experiência se passa para a vida onlife, ambientada na era digital em que algoritmos ditam normas e se expandem aos domínios da organização social das sociedades contemporâneas. Esse contexto permite uma verdadeira reformatação (reshaping) da realidade humana, consubstanciando-se em uma nova revolução da história da humanidade e, por consequência, da legitimidade democrática na gênese e reconhecimento de novos direitos (MARRAFON; MONTEIRO, 2024, p. 6).
Confirmando esse diagnóstico e potencializando suas consequências, tem se tornado realidade a concepção de Ambient Computing, um paradigma digital com dispositivos tecnológicos desprovidos de aplicativos e de interfaces até então conhecidos.
Ambient Computing deriva de “computação ubíqua”, um conceito introduzido pelo cientista da computação Mark Weiser, no início da década de 1990, quando pensou em um futuro em que a tecnologia se entrelaçaria com o tecido da vida cotidiana, tornando-se indistinguível do ambiente ao nosso redor. A computação ambiental busca criar um ambiente no qual os dispositivos antecipem as necessidades dos usuários e respondam de forma inteligente, reduzindo a fricção ou atrito normalmente associado ao uso da tecnologia (SELVARAJ, 2024, p. 1).
Pandian explica que a Ambient Computing é uma tecnologia emergente que utiliza sensores ubíquos, aprendizado de máquina e processamento de linguagem natural para criar ambientes inteligentes que sejam sensíveis ao contexto, adaptáveis e discretos. O objetivo é proporcionar uma experiência computacional contínua, integrada ao ambiente físico, permitindo que os usuários interajam com a tecnologia sem se distraírem com ela (PANDIAN, 2023, p. 52, 56).
A Ambient Computing é uma tecnologia inovadora que se utiliza de sensores, computação ubíqua, conectividade e interfaces entre humanos e máquina para integrar a tecnologia da informação, sobretudo com o avanço da Inteligência Artificial, ao cotidiano dos indivíduos de maneira sutil e discreta, com pretensão de interação tecnológica com pessoas de forma natural, quase despretensiosa, a ponto de não requerer a atenção do humano para ativar a tecnologia e nem necessidade de emissão de comandos.
Considerando que a conectividade passa a ser passiva, fluida e invisível, é possível que há mais que uma transformação de artefatos. O que ocorre é uma mudança cultural e paradigmática, talvez com o fim da era das telas e a interrupção de uso consciente da internet, pois se não há interação ou busca, nesta nova era digital tudo apenas acontece.
Não será possível desconectar em tais ambientes. Até então, estar conectado exigia ação do utilizador e aparelhos. Na Ambient Computing estar online é um movimento passivo, contínuo e invisível, independente da interação humana, pois a tecnologia antecipa as intenções e passa a integrar a própria existência social.
Não se olvida a gama de benefícios a serem trazidos com a Ambient Computing. Entretanto, ao instrumentalizar e dar ainda mais concretude e força ao modelo de vida Onlife, surgem desafios consideráveis e riscos exponenciais de implantação de um sistema de vigilância e controle total dos cidadãos.
De início, será preciso superar as questões afetas à segurança, opacidade, confiabilidade e acessibilidade dos dados extraídos e das informações oriundas da interação entre humanos e máquinas, sobretudo aquelas que são inerentes à privacidade dos indivíduos.
Mais grave, no entanto, é que tudo pode ser monitorado, divulgado e manipulado. Os riscos aos direitos fundamentais à intimidade, privacidade e liberdade são evidentes e colocam em xeque todo o seu conteúdo funcional e sua efetividade.
Será cada vez mais fácil mercantilizar a existência humana e solapar a autonomia da vontade à medida em que se pode invadir a intimidade, colher dados, prever, manipular e modificar comportamentos à luz dos dados extraídos (ZUBOFF, 2018). Além disso, poder-se-á utilizar as informações colhidas para induzir o medo e a insegurança, permitindo o hackeamento e a divulgação, p. ex., de segredos individuais.
Se a intimidade e a vida privada são fortemente violadas, a liberdade se perde no momento anterior, quando a vontade é induzida e no momento posterior, quando o processo de dominação ameaça a livre expressão individual com a superexposição informacional. E, qualquer movimentação contra o sistema, pode gerar incriminações.
Para o devido enfrentamento desses desafios é preciso compreender a dimensão disruptiva e paradigmática da nova era tecnológica e reconhecer a urgência de repensar os mecanismos estruturais e metodológicos de sua garantia e efetividade. Parece claro que os instrumentos jurídicos forjados no seio da modernidade não dão mais conta dessa proteção, exigindo uma verdadeira reengenharia constitucional (MARRAFON, 2018). O pensamento de Luciano Floridi, suas categorias e seu olhar para uma nova ética da informação surgem como caminhos promissores nessa árdua e estimulante tarefa.
[1] No Brasil a Lei 12.965, de 23 de abril de 2014, e seu art. 5º, conceitua o que é Internet, tratando-se de um sistema constituído do conjunto de protocolos lógicos, estruturado em escala mundial para uso público e irrestrito, com a finalidade de possibilitar a comunicação de dados entre terminais por meio de diferentes redes.
[2] O próprio Luciano Floridi conceitua a Infosfera: é um neologismo que criei há anos com base em “biosfera”, um termo que se refere àquela região limitada em nosso planeta que sustenta a vida. Ela denota todo o ambiente informacional constituído por todas as entidades informacionais (incluindo assim também os agentes informacionais), suas propriedades, interações, processos e relações mútuas. Trata-se de um ambiente comparável, mas diferente, do ciberespaço (que é apenas uma de suas sub-regiões, por assim dizer), pois também inclui espaços de informação off-line e analógicos. Veremos que é também um ambiente (e, portanto, um conceito) que está evoluindo rapidamente (FLORIDI, 2007, p. 3-4).
BRASIL. Lei 12.965, de 23 de abril de 2014. Brasília, DF, 2014.
FLORIDI, Luciano. A Look into the Future Impact of ICT on Our Lives. In: The Information Society. DOI:10.1080/01972240601059094, 2007, p. 59-64.
FLORIDI, Luciano. Ethics after the information revolution. In: FLORIDI, Luciano (ed.). The Cambridge handbook of information and computer ethics. Cambridge University Press, 2010, p. 3-19.
FLORIDI, Luciano. The 4th Revolution: how the infosphere is reshaping human reality. Oxford: Oxford University Press, 2014.
FLORIDI, Luciano (ed.). The Onlife Manifesto: being human in a hypeconnected era. Oxford: Springer Cham, 2015.
MARRAFON, Marco Aurélio; MONTEIRO, Julia Iunes. Legitimidade Democrática na Governança Algorítmica: primeiros parâmetros para sua aplicação na regulação e no desenvolvimento da inteligência artificial e de políticas baseadas em dados. In: Revista Direitos Fundamentais & Democracia V. 29, N. I, p. 5-50, jan./abril, 2024 DOI:10.25192/ISSN.1982-0496.RDFD.V.29.N.I.2747.
MARRAFON, Marco Aurélio. Reengenharia constitucional para superar a crise da democracia liberal. Revista Consultor Jurídico, 05.08.2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-ago-05/constituicao-poder-reengenharia-constitucional-superar-crise-democracia-liberal Acesso em 08/04/2020.
PANDIAN, Pandi Kirupa Kumari Gopalakrishna. Ambient Computing and Intelligence: Creating Intelligent Environments for the Future. In: International Journal of Information Technology (IJIT), Volume 4, Issue 01, Chicago, January-June 2023, pp. 53-57 Article ID: IJIT_4_01_006. DOI: https://doi.org/10.17605/OSF.IO/NRHBZ.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 9ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
SELVARAJ, Janani. Ambient Computing: The Future of Seamless Technology Integration. Publicado no Linkedin, em 21.112024. Disponível em: <https://www.linkedin.com/pulse/ambient-computing-future-seamless-technology-janani-selvaraj-vwyvc>. Acesso em: 01 jun. 2025.
SILVA, Pietra Vaz Diógenes. Irregulável Mundo Novo. São Paulo: Editora Dialética, 2023.
ZUBOFF, Shoshana. The age of surveillance capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. New York: Public Affairs, 2018.