A reforma tributária brasileira promete modernizar a exportação de serviços, alinhando-a às práticas internacionais. No entanto, lacunas importantes na regulamentação podem comprometer a segurança jurídica das empresas e a competitividade do país no cenário global.
Esse é o terceiro texto de uma série de reportagens que aponta as lacunas e propõe soluções com relação à reforma tributária.
A reforma tributária, através da Emenda Constitucional 132/2023 e da Lei Complementar 214 (LC 214/2025), estabelece um novo sistema baseado no IVA dual (IBS e CBS), substituindo tributos como PIS, Cofins, ICMS e ISS. A implementação ocorrerá entre 2026 e 2032, com fase de testes inicial.
O novo modelo traz mudanças significativas, incluindo o direito à devolução integral de créditos acumulados, a adoção do princípio do destino na tributação e a desoneração das exportações de serviços quando atendida certos critérios. Estas alterações visam modernizar o sistema tributário brasileiro e aproximá-lo das práticas internacionais mais eficientes.
A definição do local de consumo emerge como um dos principais desafios. Para fins de enquadramento da exportação de serviço, a LC 214/2025 define consumo como “utilização, exploração, aproveitamento, fruição ou acesso”. Esta definição ampla pode gerar controvérsias e insegurança jurídica, demandando critérios objetivos para determinar a territorialidade.
Os riscos identificados incluem a possibilidade de dupla tributação, especialmente em operações internacionais complexas. Soma-se a isso a dificuldade na segregação territorial de serviços digitais, as incertezas sobre exportações indiretas e a responsabilidade excessiva atribuída ao prestador de serviços.
Hoje, a exportação de serviços pode ser isenta de certos tributos, como PIS/Cofins e ISS, mas há, segundo o advogado e professor de direito tributário Breno Dias de Paula, insegurança jurídica quanto ao que é considerado “exportação de serviço”. Isso, de acordo com ele, sobretudo pelo critério de local do consumo ou local do contratante e a dificuldade em caracterizar a “utilização” do serviço no exterior. Por ser muito abrangente, tal definição pode gerar controvérsias.
Conheça o JOTA PRO Tributos, plataforma de monitoramento tributário para empresas e escritórios com decisões e movimentações do Carf, STJ e STF
“A lei complementar deverá esclarecer o critério de territorialidade: onde se considera que o serviço foi prestado ou utilizado? Deve lidar ainda com o tratamento de serviços digitais e intangíveis, documentação e comprovação da exportação, prazo e o procedimento para devolução de créditos acumulados”, enumera Dias de Paula.
Assim, o advogado afirma haver preocupação sobre a possibilidade de risco de dupla tributação se o Brasil considerar que o serviço foi prestado aqui, mas o país de destino também tributa.
Das situações a serem sanadas, na visão dele, está, por exemplo, a prestação de serviços a empresas estrangeiras com beneficiários no Brasil. A dúvida, nesses casos, é se ainda serão considerados exportação. Outra questão é saber se as exportações indiretas de serviços (por meio de intermediários) serão desoneradas.
Um dos pontos destacados pelo especialista é a potencial consequência para o Brasil como um todo a depender da regulamentação definida. Caso a normatização não seja clara, a concorrência internacional pode ser afetada e empresas brasileiras podem perder competitividade.
“É fundamental destacar nossa preocupação com a regulamentação de pontos ainda controversos, especialmente no que diz respeito ao setor de exportação. A manutenção da competitividade das empresas brasileiras no mercado internacional depende de um sistema tributário que assegure neutralidade e celeridade na devolução de créditos”, diz.
Oportunidades para competitividade brasileira
Para Pablo Silva Cesário, presidente-executivo da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca), a reforma tributária terá efeito de competitividade na exportação de serviços ao eliminar um dos principais vilões: a cumulatividade tributária.
Como oportunidades ao país, Cesário fala de setores promissores para exportação como engenharia, tecnologia da informação e Direito. “Para além dos serviços de data center, temos capacidade competitiva com serviços bancários e incluir ainda os serviços de contabilidade”.
O sistema IVA foi concebido para garantir neutralidade tributária nas operações empresariais, independentemente da complexidade da cadeia produtiva ou da natureza do bem ou serviço (seja tangível ou intangível). Contudo, esta neutralidade só será efetiva se o conceito de exportação estiver inequivocamente atrelado ao domicílio do consumidor, seguindo as melhores práticas internacionais. Sem esta clareza conceitual, corre-se o risco de comprometer a competitividade das empresas brasileiras no mercado global.
Breno Dias de Paula afirma que desde 1988 os exportadores travam uma luta para dar concretude ao comando constitucional da desoneração tributária para a exportação. Agora, no momento da transição da reforma, precisam evitar entraves e ambiguidades.
“Qualquer insegurança jurídica ou aumento da carga tributária pode comprometer seriamente a posição do Brasil nas cadeias globais de valor. Esperamos que o processo de regulamentação seja conduzido com amplo diálogo e sensibilidade às especificidades do setor exportador”, acrescenta. A referência ao local do “consumo” do serviço para fins de caracterização ou não da operação de exportação é central neste debate.
A reforma tributária brasileira tem o potencial de alavancar significativamente a competitividade das empresas nacionais no cenário internacional, especialmente no setor de serviços. No entanto, para que este potencial se concretize plenamente, é crucial que haja uma definição precisa e inequívoca do conceito de exportação, ancorada na localização do consumidor final.
Esta abordagem não só alinha o Brasil às melhores práticas internacionais, mas também cria um ambiente propício para o crescimento das exportações de serviços, um setor cada vez mais importante na economia global. A clareza nesta definição é a chave para desbloquear oportunidades de expansão para empresas brasileiras, contribuindo para o aumento das receitas de exportação e, consequentemente, para o crescimento econômico do país.
Definição sobre consumo
Diante disso, Eduardo Galvão afirma que os problemas seriam, então, a própria conceituação de consumo no exterior ou a complexidade na segregação territorial. Ele dá como exemplo uma plataforma de cursos online.
Na hipótese, a plataforma brasileira é contratada por empresas multinacionais sediadas nos Estados Unidos. A legislação é clara no sentido de que o serviço prestado no exterior não será tributado. O consumo desse serviço da plataforma nos Estados Unidos, portanto, não será tributado. Mas e quando essa empresa disponibiliza aos executivos no Brasil o consumo desse serviço contratado?
“A legislação estabelece que o prestador vai ter que segregar. Então, imagine, esse meu cliente vai ter que falar: ‘parte do curso foi consumido lá e parte do curso foi consumido aqui. O que foi consumido aqui, eu tenho que pagar o tributo. O que foi consumido lá, não’. Esse é um exemplo em que fica muito clara essa lacuna, esse ponto de atenção”, explica.
As melhores práticas internacionais indicam que o “consumo” deve ser considerado ocorrido no local de residência do adquirente dos bens imateriais e serviços, exceto em situações muito peculiares, justamente para garantir segurança jurídica e preservar o princípio da neutralidade que rege os tributos sobre o valor agregado (como IBS e CBS).
Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA
Nesse sentido, a regulamentação deve esclarecer que o fato de a LC 214/2025 ter definido como “local de consumo” o lugar onde ocorre “a utilização, a exploração, o aproveitamento, a fruição ou o acesso” não deve levar a uma busca, muitas vezes inviável, ineficiente e insegura, do local onde ocorra o “efetivo consumo”, bastando que se presuma como tal o local da residência ou estabelecimento do comprador.
E o terceiro ponto, na visão de Galvão, seria a responsabilidade excessiva do prestador de serviço. Como, por exemplo, quando não ocorre a efetiva exportação do bem relacionado ao serviço.
“Quem presta um serviço que agora está elencado no parágrafo 1° como imune, e não vai ser tributado, mas está vinculado a um bem material. E esse bem material, ao fim e ao cabo, não foi exportado. Nesse caso, o prestador fica obrigado a recolher o tributo, acrescido de juros e multa. É o que prevê o artigo 80, parágrafo 4º. Então, você acaba criando um risco aqui para o fornecedor de ter o controle total da cadeia produtiva”, aponta o especialista.
Em mais uma situação que pode suscitar dúvidas é a de serviços de pesquisa e desenvolvimento (P&D), comuns no contexto de empresas pertencentes a grupos econômicos multinacionais. Caso uma empresa brasileira preste esses serviços à sua controladora no exterior, será preciso entender onde será considerado ocorrido o consumo.
O Brasil seria onde foi desenvolvida a pesquisa, mas há o país de domicílio da controladora, já que a propriedade intelectual dos resultados da pesquisa será usufruída por ela. Há, ainda, a possibilidade de o critério ser onde venha a ocorrer o registro de eventual patente resultante da pesquisa, que poderá ser até mesmo um terceiro país.
A reforma representa um avanço significativo para o sistema tributário brasileiro, mas seu sucesso depende de uma regulamentação clara que assegure segurança jurídica, competitividade internacional, eficiência administrativa e neutralidade tributária.