A Controladoria-Geral da União (CGU) abriu, no dia 29 de julho, consulta pública sobre proposta de Portaria conjunta com a Advocacia-Geral da União (AGU) para estabelecer nova regulamentação dos critérios e procedimentos para a negociação, celebração e acompanhamento dos acordos de leniência previstos na Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção).
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A proposta pretende substituir a atual Portaria Conjunta nº 4/2019[1] e, conforme destacado pela CGU na divulgação da consulta pública, as principais mudanças se referem à regulamentação do pedido de “marker”, estímulo à autodenúncia, critérios para se evitar o bis in idem, melhor definição da metodologia para cálculo da vantagem auferida e definição de regras de transparência.
Trazemos a seguir algumas reflexões sobre parte das propostas constantes na minuta de Portaria, sem pretensão de exaurir sua análise. A proposta apresentada pela CGU é densa e meritória e, com certeza, atrairá a atenção de toda a sociedade civil, academia e setores público e privado.
Regulamentação do pedido de “marker”
Dentre as novidades, a minuta de Portaria institui procedimento de “marker”, que consiste na formalização pela pessoa jurídica do interesse em colaborar ainda que não possua, no primeiro momento, todas as informações e documentos necessários para a proposta de acordo.
Para tanto, a pessoa jurídica deve apresentar petição à Diretoria de Acordos de Leniência contendo resumo da infração a ser noticiada, outros atores envolvidos e as diligências que ainda pretende realizar para a apuração dos ilícitos.
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A CGU, então, emitirá declaração atestando a tempestividade da autodenúncia e prazo para que a pessoa jurídica efetive a proposta de acordo. Com isso, a pessoa jurídica fará jus aos benefícios da iniciativa de autodenúncia, que impactam diretamente no valor da multa, a ser definido no curso das negociações.
O “marker” contribui para o fortalecimento da confiança no programa de leniência, elemento essencial para sua eficácia; além de, em determinados casos, como cartel em licitações, estimular a corrida dos infratores para cooperar com as autoridades. Trata-se de prática já consolidada nos acordos do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e de jurisdições internacionais.
Regras para evitar o bis in idem
Na minuta submetida à consulta pública, é prevista a compensação entre valores endereçados no acordo de leniência e aqueles pagos em outros processos administrativos ou judiciais, desde que comprovada a identidade de sujeitos, natureza jurídica e de fatos (art. 54).
A compensação não é, em si, uma novidade.
Dentre os parâmetros fixados pela CGU na renegociação dos acordos de leniência no âmbito da ADPF 1051[2], por exemplo, tem-se justamente a compensação de valores pagos pelas empresas colaboradoras ou por pessoas físicas relacionadas em outros processos administrativos e judiciais.
De toda forma, a normatização é, sem dúvidas, um avanço institucional.
Nesse ponto, vale destacar que também o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Cade reconhecem o direito à compensação de valores pagos em outros processos, originários de outras instituições, como a CGU.
O TCU, recentemente, em julgamento ocorrido em julho de 2025, reiterou seu entendimento que “os valores pagos pelos colaboradores no âmbito de seus acordos são passíveis de abatimento em fase posterior à condenação em débito”[3].
O Cade, por sua vez, em julgamento ocorrido em maio de 2024, entendeu ser possível “o abatimento da multa aplicada pela CGU, em casos de cartel, na hipótese da multa do Cade ser superior à multa da CGU”[4].
Em relação à coordenação entre o Cade e a CGU, a proposta de Portaria prevê ainda a aplicação do desconto máximo de 2/3 da multa da Lei Anticorrupção para as pessoas jurídicas que também tenham celebrado acordo de leniência com o Cade, desde que a proposta à CGU seja feita em até 6 meses após a proposta de acordo com a autoridade antitruste.
Sem acordo com o Cade, a redução da multa nos acordos de leniência anticorrupção é definida, nos termos do art. 19 da proposta de Portaria, considerando critérios de iniciativa de autodenúncia, grau de colaboração e condições relevantes. Com acordo concorrencial, o desconto máximo será aplicado independentemente da avaliação desses critérios.
De acordo com a proposta de Portaria, as novas regras, sem excepcionalização das relativas ao bis in idem, se aplicam às negociações em curso e aos acordos futuros (art. 59), o que pode vir ser objeto de questionamento. Considerando o objetivo expresso na proposta de Portaria de se evitar o duplo pagamento pelos mesmos ilícitos e a renegociação de acordos pretéritos no âmbito da ADPF 1051, pondera-se a possibilidade de que seja, ao menos, definido um prazo de transição para pessoas jurídicas que já tenham firmado acordo com a CGU possam requerer a aplicação das compensações ou do desconto máximo na multa.
Apesar dos avanços, a proposta não encerra a discussão sobre múltiplas penalizações. A esse respeito, em julho, o Partido Verde ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o art. 29 da Lei Anticorrupção.[5]
Segundo a petição inicial da ADI 7846, o artigo, que preserva as competências do Cade, do Ministério da Justiça e do Ministério da Fazenda para processar e julgar fato que constitua infração à ordem econômica, seria inconstitucional por permitir a sobreposição de competências sancionadoras por diferentes órgãos públicos e a subsunção de uma mesma conduta em diferentes tipos infracionais.
Na ação, o Partido requereu seja dada interpretação conforme ao art. 29, de forma que as competências do Cade e dos Ministérios da Justiça e da Fazenda não alcancem a pessoa jurídica que responder ou houver respondido a processo sancionatório perante a CGU pelo mesmo fato. Trata-se, portanto, de entendimento mais amplo do que o proposto na Portaria.
Estímulo à autodenúncia
A proposta de Portaria define outras hipóteses, além da já citada concomitância de acordo de leniência com o Cade, em que o desconto máximo da multa será aplicado independentemente da avaliação de todos os critérios de redução da penalidade, previstos no art. 19.
Essas previsões abordam, em certa medida, as reflexões sobre colaboração sem multa realizadas nos últimos anos, pautadas na premissa de que os incentivos hoje postos não têm sido suficientes para estimular a autodenúncia por parte das empresas. Nesse sentido, destaca-se o estudo realizado pelo Grupo de Estudos em Compliance da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, publicado em dezembro de 2023[6].
A primeira hipótese de aplicação do desconto máximo da multa refere-se ao reporte voluntário de ato lesivo sobre o qual não haja conhecimento prévio do Estado, em qualquer grau de maturidade ou foro. Assim, será considerado inédito o ato lesivo em relação ao qual não tenha sido instaurada investigação, processo administrativo, inquérito policial ou qualquer outro tipo de apuração, inclusive na esfera penal. Nesses casos, a pessoa jurídica deverá formalizar declaração de ausência de conhecimento desses procedimentos.
Embora o desconto máximo não dependa da análise dos critérios usuais, previstos no art. 19, a proposta traz outras condicionantes para sua aplicação, como a comprovação da existência de programa de integridade implantado e em funcionamento, que venha a ser considerado pela CGU como aderente ao modelo previsto no Decreto 11.129/2022.
A segunda hipótese refere-se aos casos de ato lesivo de responsabilidade de pessoa jurídica adquirida por fusão, incorporação ou por qualquer outro tipo de operação societária. A pessoa jurídica adquirente fará jus à redução máxima da multa, observadas outras condições, desde que reporte os fatos dentro de doze meses da data da conclusão da aquisição, em semelhança à safe harbor policy aplicada pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos.
Metodologia de cálculo da vantagem auferida
Outro destaque da minuta são as previsões sobre cálculo da vantagem auferida ou pretendida com a infração (arts. 28 a 31).
Quanto ao cálculo da vantagem propriamente dito (art. 28), sabe-se tratar de quantificação muitas vezes desafiadora. No entanto, a proposta prevê critério excessivamente amplo para casos em que não por possível obter informações confiáveis para estimar a vantagem obtida na execução de contrato com a administração pública: a Portaria propõe que o cálculo poderá ser feito “com base em análise indireta da lucratividade média da pessoa jurídica no período em que a vantagem foi por ela auferida”, ou mediante outros métodos a critério da CGU e da AGU (art. 28, §4º).
Por outro lado, há novidade segundo a qual a pena de perdimento da vantagem será determinada pela aplicação de um percentual entre 70% e 100% da vantagem estimada, a ser definido com base nos mesmos critérios para aferir o desconto da multa da LAC (arts. 19 a 23). A proposta prevê que o percentual poderá ser ainda menor caso (i) a colaboração prestada permita a descoberta de ilícitos relevantes e desconhecidos pelo Estado, ou a negociação tenha se iniciado por autodenúncia ou (ii) a situação econômica do colaborador indique incapacidade de pagamento dos valores calculados para as sanções e o ressarcimento de danos.
Dano presumido
Um ponto a ser melhor debatido é a disposição sobre dano presumido do art. 33 da minuta. O dispositivo aponta apenas para a necessidade de indenização pelo dano que possa ser presumido a partir das circunstâncias dos ilícitos, sem delinear melhor as situações a partir das quais a autoridade entende presumível o dano.
Ainda que se trate de conceito vinculado ao caso concreto, a ausência de parâmetros objetivos para uma figura que parte de presunção em desfavor do particular é um ponto que poderá ser abordado no decorrer da consulta pública.
Discussão qualificada para o aprimoramento dos acordos
Dada a relevância da proposta de normatização para o programa de leniência da Lei Anticorrupção, é importante e salutar que sua construção seja qualificada pela participação da sociedade civil, da academia e dos setores público e privado.
A precedência de consulta pública à edição de novos instrumentos normativos tem se tornado uma prática bem-sucedida da CGU, a exemplo da consulta que antecedeu a edição da Portaria CGU 155/2024, que regulamentou o termo de compromisso no âmbito da Lei Anticorrupção.
Com essas considerações iniciais, esperamos que a consulta pública aberta seja um espaço para refletirmos detidamente sobre a experiência com os acordos de leniência e as melhores formas de aprimorar essa política tão saliente no combate à corrupção. As contribuições podem ser enviadas até 12 de agosto por meio da Plataforma +Brasil.
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[1] A proposta de Portaria também resultaria na revogação da Instrução Normativa nº 2/2018 e da Portaria Normativa Interministerial CGU/AGU nº 36/2022.
[2] Conforme petição do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), do Solidariedade e do Partido Comunista do Brasil (PcdoB) de 15 de maio de 2024 na ADPF 1051. Os partidos políticos questionam a constitucionalidade dos acordos de leniência firmados antes de agosto de 2020, sob alegações de vícios como coação, multas arbitrárias e falta de coordenação entre órgãos de persecução. No início de 2024, o ministro André Mendonça, relator da ADPF, promoveu audiência de conciliação e concedeu prazo para solução consensual entre empresas colaboradoras e entes públicos (CGU, AGU e MPF). Os termos aditivos negociados pendem de homologação na ADPF, que está pautada para julgamento neste mês de agosto.
[3] Acórdão nº 1515/2025, Relator Aroldo Cedraz.
[4] Processo administrativo nº 08700.007776/2016-41. Voto-vista do Presidente do Cade, Alexandre Cordeiro.
[5] No mesmo dia da propositura da ADI, o Partido Verde apresentou pedido de desistência, ainda pendente de apreciação pelo min. Relator Luiz Fux.
[6] Disponível em: https://direitosp.fgv.br/sites/default/files/arquivos/relatorio-grupo-de-estudos-em-compliance-fgv-direito-sp.pdf.