Em texto de novembro de 2023, afirmamos que o projeto de lei voltado a disciplinar as normas gerais sobre concursos públicos (o PL 2258/2022) trazia indispensável dispositivo que vedava discriminação ilegítima de candidatos em qualquer fase do certame. Parecia óbvio, mas era necessário dizê-lo – como demonstravam as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) impedindo discriminações de diferentes naturezas em concursos.
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No plano legislativo, em setembro de 2024, o PL 2258/2022 converteu-se na Lei 14.965. Nas disposições preliminares, veda-se “em qualquer fase ou etapa do concurso público a discriminação ilegítima de candidatos, com base em aspectos como idade, sexo, estado civil, condição física, deficiência, etnia, naturalidade, proveniência ou local de origem, observadas as políticas de ações afirmativas previstas em legislação específica” (art. 2º, § 4º).
Já no capítulo sobre execução do concurso público, determina-se que o edital do certame preveja “os percentuais mínimos e máximos de vagas destinadas a pessoas com deficiência ou que se enquadrem nas hipóteses legais de ações afirmativas e de reparação histórica, com indicação dos procedimentos para comprovação” (art. 7º, XI).
No plano jurisprudencial, o STF pacificou o entendimento sobre discriminação contra as mulheres em concursos para carreiras militares. No texto anterior, citamos a decisão cautelar na ADI 7.433, em que se discutia a constitucionalidade de uma lei do Distrito Federal que limitava a 10% a participação de mulheres nos quadros da Polícia Militar.
Sob relatoria do ministro Cristiano Zanin, esta ADI teve seu mérito julgado em maio de 2024, concluindo-se que a restrição viola múltiplos dispositivos da Constituição Federal, quais sejam: o direito à não discriminação em razão do sexo (art. 3º, IV), a isonomia e a igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, caput e I), o dever de proteção do mercado de trabalho da mulher (art. 7º, XX), a proibição de não adoção de critério discriminatório por motivo de sexto na admissão em ocupações públicas (art. 7º, XXX) e o princípio de reserva de lei para estabelecer requisitos diferenciadores na admissão de servidores públicos, que devem ter justificativas razoáveis (art. 39, § 3º).
Além desta ação, o STF, pelos mesmos fundamentos, reconheceu a inconstitucionalidade de dispositivos discriminatórios similares das carreiras de policial e de bombeiro em outros estados: Amazonas (ADI 7.492), Santa Catarina (ADI 7.841), Sergipe (ADI 7.480), Bahia (ADI 7.558), Pará (ADI 7.486), Tocantins (ADI 7.479), Acre (ADI 7.557), Mato Grosso (ADI 7.487), Rio de Janeiro (ADI 7.483), Minas Gerais (ADI 7.488), Paraíba (ADI 7.485) e, a mais recente, Rondônia (ADI 7.566).
Algumas leis traziam, efetivamente, um limite máximo para as mulheres; outras não o faziam expressamente, mas “permitiam” interpretação ilegítima nesse sentido ao se converter percentual “mínimo” em “máximo”; e, finalmente, algumas leis atribuíam competência para uma autoridade, discricionariamente, fixar o percentual de mulheres que entendesse “necessário ao serviço”.
Por isso, a decisão do STF ora declarou a inconstitucionalidade dos dispositivos, ora declarou a nulidade parcial sem redução de texto, ora declarou inconstitucional uma forma de interpretação, ora conferiu interpretação conforme à Constituição. Em dois casos (ADI 7.487 e 7.483), chamou a atenção o reconhecimento das normas como sendo políticas de ação afirmativa, isto é, como percentuais mínimos reservados às mulheres.
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Como lembramos no artigo anterior, os editais dos concursos não são meros instrumentos organizadores de um certame, ou seja, não são instrumentos politicamente neutros, porque “editais expressam uma ideologia” (Fontainha et.al., 2015, acessível aqui). Ao proibir discriminações ilegítimas, a Lei 14.965/2024 autoriza que o Poder Judiciário analise se o tratamento diferenciado em relação a um grupo tem justificativa legal e constitucional.
Em algumas carreiras, como a militar e a policial, é notório que a igualdade de gênero ainda é um desafio. Por isso, os acontecimentos desses últimos meses proibindo discriminações ilegítimas, no plano legislativo e judicial, devem ser comemorados, ainda que a igualdade de gênero esteja longe do ideal.