Advocacia e magistério: dois mundos, uma convivência

Curiosamente – e sem que tenha sido resultado de uma escolha deliberada – minha trajetória na advocacia coincidiu com a de professor. Por insistência de um bom amigo, comecei a lecionar em 1987, recém-formado, numa faculdade privada de Tecnologia da Informação, com a disciplina de Direito e Informática.

Desde então, dei aulas em diversas instituições, orientado pelas áreas que me instigam: Direito Constitucional e Administrativo. Bem verdade que nunca me afastei da Universidade Federal do Paraná, onde comecei a lecionar formalmente em 2004. Nesse meio-tempo, é claro, a advocacia foi o meu ofício cotidiano. Dois turnos, portanto, e dois compromissos.

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Para mim, nunca foi fácil conciliar advocacia e magistério. As urgências do escritório, as viagens, os prazos e reuniões com clientes ou órgãos públicos muitas vezes se aproximavam do horário fixo das aulas e, mais ainda, conflitavam com o tempo necessário para preparar cada encontro com alunos e alunas. A docência exige entrega intelectual constante – leitura, reflexão, organização didática – que não se ajusta aos intervalos entre uma petição e outra. A sobreposição entre esses dois mundos, embora exaustiva, nunca me pareceu uma escolha equivocada.

Assim como na advocacia, os tempos e as convivências universitárias foram se modificando ao longo desses quase 40 anos. Lá no século passado, não existiam notebooks nem celulares – as aulas eram anotadas à mão (e os alunos reclamavam, muitas vezes com razão, da velocidade da exposição). O professor valia-se de dois recursos tecnológicos: giz de cera e saliva. O PowerPoint só aportou nas salas de aula por volta de 1997: inicialmente, eu o rejeitei com a firmeza dos céticos; depois da trágica pandemia e de suas aulas online, aprendi a usar o recurso como apoio secundário (fiel que sou ao giz e ao improviso criativo que ele permite).

Durante a pandemia, as aulas foram suspensas e voltaram meses depois, com a vida em outra dimensão existencial. Deixamos de ser pessoas em carne e osso e nos transformamos em pixels. A agonia de lecionar num modo desconhecido e cumprir o programa em tempo menor me fez criar o Aula de Amanhã: um podcast gratuito, disponibilizado aos alunos no dia anterior à aula por videoconferência. Da caneta esferográfica ao podcast, muitas novidades surgiram nesses velozes anos. Porém, e ainda assim, a advocacia habita o meu cotidiano e exige conciliação de horários e perspectivas.

A minha primeira regra de convivência entre o docente e o advogado foi a do respeito a certas fronteiras. A principal delas está em que o horário de aula é sagrado. Ainda que o dia tenha começado com uma reunião inesperada ou um cliente angustiado, a sala de aula não admite negociação. Eu tiro o celular do bolso e o coloco numa pasta inacessível. Afinal, se o professor não respeita o próprio tempo de ensinar, também não pode esperar o respeito dos alunos por seu tempo de aprender. A aula começa e termina como previsto, com o máximo de preparo possível dentro das limitações do ofício duplo.

Outra regra essencial é a clareza na divisão das tarefas. Ou, melhor, dos papéis: professor não advoga em sala de aula e advogado não ensina por meio de petições. Quando entro na sala – ou escrevo artigos e livros – me esforço ao máximo em deixar de lado a advocacia.

Evito, mas se preciso tratar de um tema relacionado a uma causa em que advogo, faço a revelação e peço que ouçam com cautela a minha fala (que pode vir inconscientemente enviesada). Mais: apresento, sempre que possível, as diversas compreensões sobre determinado tema – e peço aos alunos e alunas que estudem, reflitam e façam as suas escolhas. Cada um na sua, todos numa boa, orientados pelo respeito mútuo e liberdade de pensamento.

No mesmo sentido, o advogado precisa deixar as vestes de professor do lado de fora das petições, audiências e sustentações orais. Lembro-me bem de um desembargador amigo que, ao comentarmos a respeito de um célebre professor, me disse que ninguém o aguentava em sustentações orais – eis que não defendia a tese do cliente, mas se portava como se estivesse ensinando verdades ao tribunal, tintim por tintim. Aqui também o respeito é fundamental.

Na convivência com advogados, juízes e promotores, aprendi a importância de escutar com atenção e observar com cuidado. Estudo o processo, compreendo o que pode ser feito, mas, como em qualquer relação social, talvez o mais relevante esteja em perceber o que o outro pensa, espera ou teme. A empatia é fundamental, eis que nos permite refletir sobre as perspectivas da parte contrária e antecipar seus possíveis movimentos. E isso, ao fim e ao cabo, também é uma forma de aprendizado. Nesse ponto, advocacia e magistério começam a se encontrar.

Afinal, se há algo que realmente marca a minha compreensão da atividade docente, é o fato de que sou, antes de tudo, um aprendiz. São os alunos e alunas que me ensinam a ensinar. Sou imensamente grato por isso. Posso até dominar o conteúdo da disciplina, mas a experiência didática é sempre construída nos olhares, nas expressões e nas dúvidas daquelas pessoas que acreditam que a convivência universitária tem o poder de nos transformar. A universidade é especialmente um espaço de humanização e a longa experiência docente renova e ensina.

O tempo é um bom amigo. Com o seu transcurso, aprendi que a conciliação entre advocacia e magistério não se dá pela sobreposição dos papéis, mas pela separação cuidadosa de suas exigências. Cada atividade tem sua ética, seus rituais, seus riscos e suas recompensas. Quando bem demarcadas, elas se alimentam mutuamente: ensinar ajuda a advogar com mais clareza; advogar ajuda a ensinar com mais responsabilidade. Ainda hoje, depois de quase quatro décadas, tento seguir os dois caminhos com o mesmo cuidado de antes: tentando não misturar as funções, mas reconhecendo que ambas me constituem.

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