Neste mês, veio a público o esboço de um projeto de lei elaborado pelo Ministério da Justiça que pretende tipificar o crime de ecocídio, com penas que podem chegar a até 40 anos de reclusão. A proposta, embora nasça de uma preocupação legítima com a proteção ambiental e com a responsabilização por desastres de grandes proporções, levanta uma série de preocupações jurídicas que não podem ser ignoradas.
A primeira delas diz respeito ao lugar do Direito Penal em um Estado Democrático de Direito. Trata-se por natureza de um ramo excepcional, fundado no princípio da intervenção mínima e da subsidiariedade. O poder punitivo do Estado só deve ser acionado quando os demais instrumentos normativos se revelam insuficientes para a proteção de bens jurídicos essenciais. Ignorar esse limite é comprometer a racionalidade do sistema e a sua legitimidade. O Direito Penal não pode ser confundido com o espaço da indignação social. Sua vocação não é expressiva, mas seletiva, limitada e garantista.
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A proposta em exame parece violar essas premissas de forma evidente. Os tipos penais sugeridos são abertos, de contornos vagos, e baseados em expressões como “danos ambientais graves e irreversíveis” ou “ofensa de grande proporção aos ecossistemas”. Sem critérios objetivos de configuração do ilícito, o que se estabelece é um campo fértil para a insegurança jurídica, para decisões judiciais instáveis e para a politização da persecução penal. Fatos semelhantes poderão ser tratados de maneira desigual, não pela gravidade do dano, mas pela leitura subjetiva do julgador ou pelo contexto político em que a acusação se desenvolve.
Mais grave ainda é a desproporcionalidade das penas propostas. O texto fala em dez a vinte anos de reclusão para o ecocídio simples, podendo ultrapassar trinta anos em suas formas qualificadas e atingir quarenta anos nos casos de envolvimento com organização criminosa. Trata-se de penas superiores àquelas previstas para o homicídio simples e, em alguns casos, equivalentes ou até mais severas que as aplicadas ao homicídio qualificado.
O ordenamento jurídico brasileiro reserva sua resposta penal mais severa à proteção da vida humana. Subverter essa hierarquia axiológica, por mais nobre que seja a causa ambiental, é corroer em silêncio os fundamentos civilizatórios do sistema penal. Penas desmedidas não aumentam a efetividade da norma. Ao contrário, tendem a paralisar sua aplicação.
Esse desequilíbrio é agravado por uma escolha técnica que, longe de representar avanço, termina por produzir um efeito regressivo disfarçado de modernização. O projeto estrutura o ecocídio como um crime de resultado, exigindo para sua configuração a comprovação de danos ambientais concretos, graves e irreversíveis. Isso impõe uma carga probatória significativa tanto no plano do nexo causal quanto no plano do elemento subjetivo.
Exige-se que o Ministério Público comprove, mediante perícias complexas e reconstruções fáticas detalhadas, não apenas que houve um dano de grande proporção, mas que ele decorreu de conduta dolosa ou culposa do agente. Esse nível de exigência é superior ao que hoje se exige para a responsabilização por poluição qualificada, prevista na Lei 9.605 de 1998, que admite hipóteses de perigo concreto e cuja aplicação, embora já enfrentando dificuldades, está consolidada na jurisprudência ambiental brasileira.
Ao exigir simultaneamente um resultado severo e uma conduta consciente e determinada, o projeto enfraquece a aplicabilidade do tipo. Cria-se uma norma que, embora aparente dureza, acabará raramente utilizada. O esforço necessário para produzir a prova do resultado e da imputação subjetiva será tamanho que os operadores do Direito tenderão a contorná-lo, optando por dispositivos mais seguros, ainda que menos ambiciosos. A retórica simbólica da punição exemplar se transforma, nesse cenário, em paralisia processual.
E há uma omissão ainda mais eloquente. Desde a Constituição de 1988, admite-se a responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais. Essa possibilidade, no entanto, continua subutilizada, em grande parte pela ausência de regras claras sobre a imputação institucional. O projeto não enfrenta esse impasse. Não propõe critérios mínimos de vinculação entre condutas empresariais e responsabilidade penal.
Ao manter o foco apenas na responsabilização de pessoas físicas, sem aprimorar os mecanismos de imputação das empresas, o projeto ignora a própria realidade dos grandes desastres ambientais, que frequentemente decorrem de decisões organizacionais, da tolerância com o risco sistêmico e da lógica empresarial de maximização de resultado.
No plano internacional, o termo ecocídio tem circulado como bandeira política, mais do que como conceito técnico. Há iniciativas em fóruns multilaterais, como a proposta de inclusão do ecocídio no rol de crimes da Corte Penal Internacional. Mas mesmo nesses espaços prevalece a cautela. Nenhum país adota o termo com o peso simbólico e punitivo que se pretende atribuir aqui. Na França, por exemplo, optou-se por criminalizar o dano ambiental agravado, com penas significativamente menores e rejeição explícita do uso da palavra écocide no texto legal, justamente para evitar interpretações ideológicas e imprecisas.
É amplamente reconhecido por especialistas que mero aumento de normas e a elevação de penas não se traduzem automaticamente em uma diminuição dos crimes. Os principais juristas das áreas de criminologia e a sociologia do direito, há décadas, apontam para a total ineficácia da crença de que a “dureza” da lei por si só tem o poder de coibir condutas ilícitas. Essa visão, infelizmente muito presente no discurso político contemporâneo, ignora que um crime é um fenômeno complexo, com raízes em questões sociais, econômicas e estruturais.
Um dos principais filósofos do Direito vivos, o professor Luigi Ferrajoli, em sua teoria do garantismo penal, critica essa visão simplista. Segundo sua teoria, o sistema penal não deve ser visto como uma ferramenta ilimitada para combater a criminalidade, mas sim como um conjunto de garantias que visa proteger os direitos fundamentais, inclusive dos acusados.
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A superprodução de leis e o aumento das sanções tendem a gerar apenas um efeito meramente simbólico, oferecendo uma falsa sensação de segurança (ou justiça) à população, sem, no entanto, impactar a realidade da incidência de determinado clima. Conforme apontado por especialistas, a efetividade da norma não está na severidade da pena, mas na certeza de sua aplicação e na existência de um sistema de justiça criminal eficiente.
É preciso resistir ao populismo penal, mesmo quando ele se apresenta revestido de preocupação ecológica. O meio ambiente precisa de proteção eficaz, mas isso não se alcança com tipos vagos, penas espetaculares e retórica punitiva. A justiça ambiental não se realiza pela via do clamor, mas pela construção paciente e técnica de instrumentos normativos claros, proporcionais e aplicáveis.
O Direito Penal pode ter um papel nesse esforço, mas só terá se for capaz de respeitar seus próprios limites. A natureza não será preservada com leis vingativas, mas com instituições confiáveis, mecanismos coerentes de responsabilização e um compromisso real com a integridade do sistema jurídico.