A Controladoria-Geral da União (CGU) foi constituída, desde a sua criação no início do século 21, por meio da agregação de funções e da incorporação de novas atribuições. Nas duas décadas seguintes se construiu sobre esta um plástico modelo que se fortaleceu e se expandiu, ganhando presença política e projeção na opinião pública, além de mimetizar modelos subnacionais.
Uma análise, diríamos, filosófica dessa trajetória de pouco mais de duas décadas indica quatro poderosos afluentes que desaguaram no seu tempo na construção desse rio – em um modelo que permitiu maleabilidade e sintonia temporal. Na tessitura dessa analogia, a CGU simboliza o encontro das águas de ideias que tem força pela sua raiz e pela sua relação com os contextos nacionais.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
O primeiro afluente batizaremos de “governança”, uma ideia que herdada dos primórdios da função controle interno, permeia o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado de 1995, e dialoga com a ideia de governança corporativa do setor privado, trazendo a função controle interno para o campo dos resultados, da auditoria no seu sentido original e do apoio à gestão.
A raiz desse afluente é o diálogo dos modelos do empresariado com a política pública, em sistemas estruturantes, em um cenário que passa por agendas da avaliação e de implementação de programas, bem como pelas discussões orçamentárias, materializando-se em auditorias e na discussão do risco, tendo como parceiro central o controle externo e as instâncias especializadas da gestão pública na estrutura ministerial.
Seu principal marco legal, a Lei 10.180/2001, tem suas raízes no contexto da reformulação institucional do controle interno ocorrido sobretudo na segunda metade da década de 1990. Destaca-se ainda um amplo conjunto infralegal sobre auditoria interna e gestão de riscos, como a Instrução Normativa SFC/MF 1/2001; a IN MP/CGU 1/2016; e a IN 3/2017, amparados em frameworks e normas internacionais de auditoria interna, bem como em normas nacionais de contabilidade.
É o mundo de administradores, contadores e economistas.
O segundo afluente é a “responsabilização” e dialoga com a ideia de prevenção da corrupção e a intolerância à impunidade associada a anseios por avanços na ética dos agentes públicos, em uma ideia de promoção de valores, de responsabilização de comportamentos desviantes.
O afluente tem a sua raiz em um movimento anticorrupção ascendente no século 21, fruto de conjunturas internacionais e do abandono de outras agendas, e se manifesta por estruturas e processos de responsabilização, bem como por mecanismos que buscam moldar comportamentos, como os programas de integridade e os códigos de conduta, tendo parceiros nas instâncias relacionadas à ética e a movimentos que defendem causas nesse sentido.
Traz como marcos legais relevantes a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), a Lei de Conflito de interesses (Lei 12.813/2013), em alguma medida o Decreto 9.203/2017, e as normas relacionadas a promoção da ética e a questão disciplinar no serviço público.
É o mundo de advogados e em alguma medida de economistas, em especial nos avanços da economia comportamental.
O terceiro afluente pode ser chamado de “Participativo” e consolida o binômio transparência e controle social, na mediação da interação da população com os governos promovendo a accountability, cobrando a qualidade da atuação estatal, interagindo cotidianamente como beneficiária de serviços públicos.
O resgate da democracia no final do século 20 serve de impulso para toda uma agenda participativa robustecida pela tecnologia, a chamada democracia digital, materializando-se em conselhos e portais da transparência, envolvendo a função controle interno com a sociedade civil organizada e com a imprensa.
Como marcos legais significativos pode-se citar a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) e a pouco conhecida Lei 13.460/2017, que trata da participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos, bem como toda a produção no campo dos chamados dados abertos.
É o mundo de cientistas políticos, sociólogos, bem como de profissionais de tecnologia da informação.
Por fim, o quarto afluente denomina-se “Investigativo”, e perpassa a ideia de inteligência, de detecção da corrupção no uso de tecnologia da informação, na investigação de agentes por meio de ações em parceria com outros agentes de natureza policial, e em alguma medida, a sua responsabilização nas diversas esferas no arcabouço jurídico nacional.
A raiz desse afluente é a atuação articulada de órgãos frente a casos concretos, desenvolvendo um movimento institucional de atuação na agenda anticorrupção, do combate mais especificamente, tendo como artefato central a chamada operação especial, tendo como parceiro o Ministério Público, a Polícia Federal e demais órgãos de defesa do Estado.
O marco legal matriz desse afluente é a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), com influências da legislação penal e ainda, da discussão da questão disciplinar no serviço público.
É o mundo de advogados com influência do direito penal e do processual penal e dos profissionais de tecnologia da informação.
Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA
Para além das caixas organizacionais que compuseram a CGU nesses 20 e poucos anos, as mutações são traduções de acomodações e de um jogo de forças entre esses quatro afluentes, influenciados por conjunturas internacionais, forças políticas, lideranças internas, pressões da população, e a inovação diante de problemas concretos e situações de grande repercussão.
A combinação dos atores e forças que alimentam esses afluentes possibilita uma atuação diversa e complexa, que dialoga com o pontual e com o sistêmico, moldando o que se entende por um controle interno no novo século. Esta conjugação criou um curso próprio e inovador, que ao se distanciar do controle tradicional de base normativa prescritiva e enfoque jurídico, reformulou uma nova conceituação dessa função que terminou por lhe trazer mais relevância.
Não é possível se discutir a função controle interno hoje sem o tradutor desses quatro rios, chaves para entender projetos, organogramas e tendências, como vetores dessas forças que se agitam em um rio sempre caudaloso e intenso, mas que tem o potencial de trazer água com nutrientes para as lavouras das políticas públicas, revertendo em desenvolvimento e em um futuro melhor.