A reestreia do Estado Dual não ocorre num tribunal obscuro do século 20, mas no centro pulsante das democracias constitucionais do século 21. A expressão, cunhada por Ernst Fraenkel em 1941 para descrever a arquitetura institucional do regime nazista, define a convivência de duas ordens jurídicas sob o mesmo Estado: uma normativa, regida por leis formais; outra prerrogativa, impulsionada por comandos arbitrários e atos de exceção.
Este artigo examina como essa lógica se atualiza no presente como projeto de exceção transnacional, articulado por meio da exportação de normas seletivas, alianças políticas e instrumentos econômicos de coerção.
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O foco recai sobre três vetores: a consolidação do trumpismo como modelo institucional de arbitrariedade legalizada; sua conexão orgânica com a extrema direita brasileira; e o papel desempenhado por Eduardo Bolsonaro na ativação desse projeto sobre a soberania nacional — como evidenciam a sobretaxa ao aço e alumínio, a investigação contra o Pix e a suspensão de vistos de autoridades brasileiras.
Hoje, o alerta ecoa nos Estados Unidos. Em artigo recente publicado na revista The Atlantic, Aziz Huq advertiu: estamos testemunhando a consolidação de um novo Estado Dual. A erosão não vem com tanques — vem em ondas sucessivas de atentados à ordem constitucional.
Começou com a política anti-imigratória, marcada pela perseguição de migrantes por agentes mascarados do ICE, sem garantias processuais mínimas, inclusive o habeas corpus. Seguiram-se exonerações arbitrárias de cargos com mandato fixo aprovados pelo Congresso, cortes orçamentários com fundamentação ideológica, censura, campanhas difamatórias, ordens executivas, ataques coordenados à autonomia universitária, ao exercício da advocacia e ao próprio Judiciário — além de ofensivas sistemáticas contra a imprensa crítica.
A autonomia do saber e a integridade do direito tornaram-se alvos de cerco institucional. Tudo com o respaldo da maioria conservadora da Suprema Corte norte-americana. Não se trata de meras ressonâncias autoritárias: trata-se da implantação progressiva de um modelo de exceção institucionalizada.
O ápice dessa erosão institucional se deu no caso United States v. Texas, quando a Suprema Corte admitiu restrições à cidadania por nascimento para filhos de imigrantes indocumentados, revertendo um entendimento que vigorava desde a interpretação da 14ª Emenda.
Em voto histórico, a ministra Ketanji Brown Jackson — primeira mulher negra a integrar a corte — rompeu o pacto de silêncio institucional ao citar diretamente O Estado Dual de Ernst Fraenkel, advertindo para a substituição gradual da normatividade constitucional por uma lógica de exceção institucionalizada. Sua dissidência não se limitou ao plano técnico: foi um gesto jurídico, político e histórico.
Ao reintroduzir o conceito de Fraenkel no cerne do debate constitucional americano, Jackson denunciou o deslizamento estrutural do sistema jurídico para uma zona de indistinção, em que comandos discricionários passam a se legitimar sob a aparência da legalidade constitucional. Sua intervenção marca uma inflexão: nomear o Estado Dual é expor os mecanismos de corrosão interna do Estado de Direito — e recusá-los publicamente.
O arbítrio desconhece fronteiras. Ele se projeta. O Estado Dual estadunidense busca hoje se transnacionalizar — e o Brasil se tornou alvo direto dessa engenharia. A conexão não é teórica: é funcional, tangível e profundamente lesiva. Expressa-se na atuação de Eduardo Bolsonaro, deputado federal que opera desde os Estados Unidos como elo entre o trumpismo e a desestabilização institucional no Sul Global.
Sua atuação integra a engrenagem que busca consolidar Jair Bolsonaro como governo fantoche, oferecendo base operacional e legitimidade formal a um projeto de exceção transnacional. Sob o manto do “conservadorismo”, defende um projeto de poder familiar, em detrimento dos interesses nacionais — com prejuízos já concretos à soberania, à ordem econômica e à estabilidade institucional do país.
O primeiro sintoma dessa engrenagem foi econômico: a sobretaxa de 50% imposta pelos Estados Unidos aos produtos brasileiros de aço e alumínio, sob o pretexto de “segurança nacional”. A medida desorganizou cadeias produtivas estratégicas e provocou impacto direto sobre empregos e receitas de exportação.
A Advocacia-Geral da União solicitou investigação contra Eduardo Bolsonaro por possível uso de informação privilegiada na compra de dólares, às vésperas do anúncio das tarifas. A operação teve repercussão imediata na balança comercial e levantou suspeitas de cooperação entre operadores políticos e interesses financeiros transnacionais.
O caso repercutiu também no cenário jurídico norte-americano: grandes importadores, como a empresa responsável por cerca de 75% do suco de laranja vendido nos EUA, moveram ação judicial contra as tarifas impostas pelo governo Trump, evidenciando não apenas os efeitos deletérios da medida para o Brasil, mas também sua incongruência econômica interna e o caráter político das sanções.
A partir desse episódio, as práticas de retaliação estratégica dos Estados Unidos ganharam fôlego renovado. Vieram os ataques ao Pix — investigado sob a Seção 301, com alegações de infração concorrencial — e a suspensão seletiva de vistos para ministros do STF, o procurador-geral da República e seus familiares, com exceção de três nomes ideologicamente alinhados.
Trata-se de um gesto calculado para fragilizar a autonomia funcional dos poderes constituídos e impor limites externos à sua atuação soberana. O alvo real não é um governo específico, mas sim a soberania institucional do país — e, em especial, suas infraestruturas públicas de inclusão financeira, como o Pix, que se contrapõem à financeirização privada dominante nos Estados Unidos e suas plataformas.
Ao elogiar o sistema brasileiro, Paul Krugman destacou que o Brasil pode ter inventado “o futuro do dinheiro” ao criar uma infraestrutura pública de pagamentos que realiza, de fato, o que os defensores das criptomoedas apenas prometeram: baixos custos de transação, segurança e acesso amplo à população. Nesse contexto, o Pix deixa de ser apenas um meio de pagamento para se tornar símbolo de um projeto democrático de autonomia tecnológica e bancarização inclusiva — precisamente aquilo que o novo regime estadunidense busca deslegitimar.
Em escalada sem precedentes, os EUA suspenderam unilateralmente os vistos de entrada para ministros do STF, o procurador-geral da República e seus respectivos familiares — com exceção de três nomes: Luiz Fux, André Mendonça e Kassio Nunes Marques. A arbitrariedade do gesto escancara sua natureza política: o que antes operava nos bastidores emerge como forma explícita de ameaça e chantagem institucional.
Esse processo ainda em curso revela o Brasil não apenas como alvo, mas como território de teste. Laboratório estratégico e fronteira de experimentação política, jurídica e econômica de um modelo autoritário global. A aproximação com a China, os corredores bioceânicos, os investimentos em soberania digital, o fortalecimento de instituições jurídicas autônomas e a reativação de uma política industrial articulada à transição ecológica e à infraestrutura regional apontam para um novo eixo de centralidade produtiva na reconfiguração do multilateralismo global.
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É nesse cenário que se inscreve a advertência feita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em entrevista à CNN americana: “Trump não foi eleito imperador do mundo”. Ao contestar publicamente a centralidade unilateral dos Estados Unidos, a fala inscreve-se como gesto de resistência à transição de um modelo de exceção velada para formas abertas de coerção jurídica, econômica e diplomática.
O que antes operava sob a máscara do unilateralismo normativo agora se expressa em sanções seletivas, investigações assimétricas e pressões institucionais direcionadas. O que está em jogo não é apenas uma disputa geopolítica: é a afirmação de limites jurídicos diante de um projeto que pretende tutelar a autonomia de países do Sul Global pela via da prerrogativa.
Fraenkel viu esse filme antes. A pergunta que se impõe é como lidamos, aqui e agora, com os vestígios e as reconfigurações do Estado Dual — tanto em sua dimensão interna, ainda atravessada por dispositivos seletivos de exceção, quanto em sua projeção transnacional, que busca reinstalar hierarquias globais por meio da coerção e da instabilidade.
Diante de uma multilateralidade emergente, marcada por novas coalizões econômicas e institucionais, a decisão brasileira não é apenas defensiva: é a oportunidade de afirmar um posicionamento soberano, articulado a regras compartilhadas e alianças contra-hegemônicas. A decisão é uma janela aberta — não para evadir, mas para mirar o horizonte e decidir, com clareza, o lugar que queremos ocupar.
FRAENKEL, Ernst. The dual state: a contribution to the theory of dictatorship. Translated from the German by E. A. Shils, in collaboration with Edith Lowenstein and Klaus Knorr. With an introduction by Jens Meierhenrich. Oxford: Oxford University Press, 2017.
HUQ, Aziz. America is watching the rise of a dual state. The Atlantic, 23 mar. 2025. Disponível em: https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2025/05/trump-executive-order-lawlessness-constitutional-crisis/682112/ . Acesso em: 20 jul. 2025.
SUPREME COURT OF THE UNITED STATES. Trump v. CASA de Maryland, Inc., 606 U.S. ___ (2025). Decisão de 27 jun. 2025. Disponível em: https://www.supremecourt.gov/opinions/24pdf/24a884_8n59.pdf . Acesso em: 21 jul. 2025.
Paul Krugman, Pix: Brasil pode ter inventado o futuro do dinheiro com sistema de pagamento, diz prêmio Nobel de Economia, BBC News Brasil, 12 jul. 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cpwqg440d7lo. Acesso em: 24 jul. 2025.
CNN Brasil. Leia na íntegra a entrevista de Lula à Christiane Amanpour, da CNN. CNN Brasil, 17 jul. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/leia-na-integra-a-entrevista-de-lula-a-christiane-amanpour-da-cnn/ . Acesso em: 20 jul. 2025.