No Brasil, a condição de ser mulher ainda representa um fator de risco. Quase vinte anos após a promulgação da Lei Maria da Penha – considerada uma das três legislações mais avançadas do mundo pelo relatório global do Unifem (atualmente ONU Mulheres) –, o país continua a registrar índices alarmantes de feminicídios, agressões psicológicas, ameaças e outras formas de violência de gênero.
A despeito dos avanços normativos, da mobilização social e da maior visibilidade do tema, a realidade concreta das vítimas segue marcada pela omissão estatal, pela desproteção e pela impunidade.
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Foi proposta no Supremo Tribunal Federal (STF), neste mês, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1242, que pode inaugurar uma nova etapa no enfrentamento da violência doméstica. A ação não busca apenas a declaração pontual de inconstitucionalidade, mas propõe o reconhecimento de uma inconstitucionalidade estrutural, em que a violência doméstica contra a mulher revela falhas persistentes, complexas e interdependentes nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
A violência doméstica e familiar contra as mulheres é, talvez, uma das mais agudas expressões de um problema estrutural no Brasil. Sua gravidade e persistência não decorrem apenas da ausência de políticas públicas, mas da insuficiência de respostas. A superação desse cenário demanda um processo estruturado, com atuação coordenada dos entes federativos, baseado em metas verificáveis e supervisão contínua.
Os dados são alarmantes e reiterados: feminicídios, agressões físicas, abusos psicológicos e ameaças fazem parte da realidade de milhões de brasileiras, e isso não é fruto do acaso. É resultado de uma cultura patriarcal enraizada, da omissão histórica do Estado e da falência de políticas públicas efetivas e integradas. Não se trata apenas de punir um agressor específico. É preciso enfrentar um sistema inteiro que falha, sistematicamente, em proteger mulheres.
A petição inicial da ADPF escancara o abismo entre norma e realidade. Embora o Brasil tenha um dos marcos legislativos mais avançados do mundo no combate à violência de gênero, a ausência de políticas públicas efetivas, integradas e sustentáveis resulta em números que envergonhariam qualquer democracia constitucional.
Estima-se que 61% das mulheres que sofreram violência doméstica em 2023 não procuraram o Poder Público. O silêncio, muitas vezes, é forçado por medo, culpa, vergonha, dependência financeira, descrença nas instituições e falta de acesso a serviços públicos de acolhimento e proteção.
A subnotificação é um dado central do problema: o que se registra já é grave, mas o que permanece invisível é ainda mais assustador. E mesmo entre os casos que chegam ao sistema de justiça, a resposta é frequentemente lenta, burocrática e insuficiente. Em 2022, havia mais de 1 milhão de processos ativos relacionados à violência doméstica nos tribunais brasileiros. O tempo médio de tramitação ainda ultrapassa dois anos. Em São Paulo, por exemplo, uma ação pode levar mais de cinco anos até o desfecho.
A ineficiência do sistema é agravada pela desarticulação entre os serviços de segurança pública, justiça e assistência social, somada à falta de investimentos constantes e estratégicos. O 9º Diagnóstico Nacional das Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher revelou a desativação de 21 unidades entre 2022 e 2023, apontando-se o Rio Grande do Sul, o Piauí e o Maranhão, com o maior número de desativações.
Em vários estados, não há plantão 24h em delegacias especializadas. Há inexistência de casas abrigo, apenas 2,4% municípios brasileiros têm pelo menos uma casa abrigo, evidenciando o abandono institucional das mulheres em situação de risco.
Na ADPF 1242, o STF, em decisão proferida pelo ministro Dias Toffoli, relator do caso, em 11 de julho de 2025, afirmou que “a presente arguição de descumprimento de preceito fundamental ostenta faceta eminentemente estrutural, cujo objeto perpassa a atuação dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário”.
O reconhecimento da dimensão estrutural das omissões estatais evidencia que não se trata de falhas pontuais, mas de uma disfunção sistêmica, cuja superação exige atuação coordenada.
No entanto, o verdadeiro desafio está na etapa seguinte: transformar em medidas concretas que efetivamente alterem a realidade violadora de direitos. Dizer é mais fácil do que fazer. A implementação de decisões estruturais exige planejamento, coordenação entre órgãos diversos, recursos materiais e humanos, além de enfrentar resistências políticas, burocráticas e culturais.
Ou seja, não basta o reconhecimento simbólico. O que se espera é uma atuação transformadora, que vá além da enunciação de princípios e assuma, com força institucional, o controle de um processo estrutural complexo e desafiador. Não há soluções fáceis, mas o que se espera: garantir que os direitos das mulheres deixem de ser negligenciados pelo próprio Estado que deveria protegê-los.
Como explicam Matheus Casimiro e Patricia Perrone[1], o controle de constitucionalidade no Brasil, que, por muito tempo, foi centrado na atuação negativa do Judiciário, como mero revisor de normas contrárias à Constituição, passou por uma transformação significativa a partir do momento em que se admitiu a possibilidade de questionar realidades inconstitucionais.
Inaugurou-se uma nova dimensão do controle constitucional: um modelo de jurisdição que não se contenta em declarar normas inválidas, mas que intervém estruturalmente na reorganização de políticas públicas, como ocorreu nos EUA com o caso Brown v. Board of Education.
A condução de um processo estrutural exige mais do que a declaração da inconstitucionalidade de determinada omissão estatal: pressupõe a articulação interinstitucional e a disposição concreta dos entes federativos para formular, executar e monitorar políticas públicas eficazes, inclusive do próprio Poder Judiciário. A própria lógica dos processos estruturais reconhece a complexidade da implementação, admitindo fases sucessivas, revisões periódicas e até momentos de inexecução parcial.
Apesar da ausência de legislação específica que regulamente o processo estrutural no ordenamento jurídico brasileiro, sua aplicação já vem sendo reconhecida na prática jurisdicional, como no caso das queimadas na Amazônia, no qual se discute obrigações estruturais do Estado para proteção ambiental (ADPF 743, 746 e 857). A despeito disso, muito já se questionou da legitimidade e os limites da adoção desse modelo decisório sem devido respaldo normativo.
Sobre a questão, tramita no Senado o PL 3/2025, que busca estabelecer parâmetros normativos para esse tipo de ação judicial. O texto propõe que o plano de atuação estrutural deve elementos essenciais como: diagnóstico do litígio; metas específicas e mensuráveis; indicadores qualitativos e quantitativos de verificação do cumprimento das metas; cronograma de implementação das medidas; critérios objetivos para o encerramento da demanda; definição dos responsáveis pela execução das ações; metodologia e periodicidade para supervisão e eventual revisão das medidas; bem como a previsão sobre a utilização de recursos orçamentários e sua alocação.
A ADPF 1242 encontra-se em fase inicial de tramitação, estando em curso o prazo de dez dias concedido à União e aos estados-membros para que prestem informações sobre as medidas adotadas no enfrentamento da violência doméstica.
Foi determinado também informações adicionais à Câmara dos Deputados, ao Senado Federal, à Presidência da República; ao Ministério das Mulheres; ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania; ao Ministério da Igualdade Racial; ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública; ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ); e à Defensoria Pública da União (DPU).
Os entes públicos, por meio da advocacia pública, ao longo desse processo, precisam romper com a lógica adversarial do “vencedor–perdedor“[2] e reconhecerem as insuficiências do Estado, de modo a se engajar, de forma propositiva, na construção de soluções que efetivamente protejam os direitos das mulheres. Mudanças significativas na sociedade exigem responsabilidade institucional e disposição para enfrentar verdades incômodas.
A omissão do Estado não é neutra. Ela mata. Ela silencia. Ela perpetua desigualdades de gênero que já deveriam ter sido superadas. A violência doméstica no Brasil é uma questão de segurança pública, de justiça, de dignidade humana: é uma questão constitucional.
Mas o que se questiona é: o STF conseguirá, de fato, transformar a realidade do problema da violência doméstica?
[1] CASIMIRO, Matheus; PERRONE, Patricia. Transformações do controle de constitucionalidade no Brasil: legitimidade, objeto e efeitos. Revista de Processo, São Paulo, v. 359, p. 445–470, jan. 2025.
[2] ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no direito processual civil brasileiro. Revista de Processo, São Paulo, v. 225, p. 389-408, nov. 2013.