Multar primeiro, regulamentar depois? A lógica invertida da CMED no pós-pandemia

A pandemia de Covid-19 escancarou falhas estruturais da regulação de preços de medicamentos no Brasil. Uma das mais graves diz respeito à ausência de definição, pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), de uma margem de comercialização específica para o elo das distribuidoras — empresas responsáveis por conectar a indústria farmacêutica a farmácias e hospitais em todo o país.

Mesmo sem estabelecimento de teto de preço específico para o setor, a CMED aplicou multas milionárias a distribuidoras que atuaram, em plena crise sanitária, para evitar o desabastecimento. Este artigo examina os impactos dessa omissão regulatória, discute a legalidade das penalidades impostas e propõe caminhos para corrigir as distorções — inclusive por meio de instrumentos já previstos na própria normativa da CMED.

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Criada em 2003, a CMED tem como objetivos a adoção, implementação e coordenação de atividades relativas à regulação econômica do mercado de medicamentos. Seu principal instrumento de regulação é a definição de teto de preços.

Entre as competências da CMED, conforme dispõe o art. 6º, V, da Lei 10.742/2003, está a de “estabelecer critérios para fixação de margens de comercialização de medicamentos a serem observados pelos representantes, distribuidores, farmácias e drogarias, inclusive das margens de farmácias voltadas especificamente ao atendimento privativo de unidade hospitalar ou de qualquer outra equivalente de assistência médica”.

Note-se, portanto, que o dispositivo determina a fixação de preços para os diferentes elos da cadeia de fornecimento de medicamentos. No entanto, até o momento, a CMED definiu apenas dois tipos de teto de preço com base no critério “elo da cadeia”:

Preço Fabricante ou Preço Fábrica (PF);
Preço Máximo ao Consumidor (PMC).

Apesar da previsão legal, a CMED nunca estabeleceu margem específica para a comercialização de medicamentos por distribuidoras (atacado), o que faz com que fabricantes e distribuidores estejam sujeitos ao mesmo teto de preço (PF).

Esse cenário remonta a um contexto já superado, em que grupos empresariais reuniam a indústria e a distribuição final em uma mesma estrutura. Hoje e já há muito tempo, as distribuidoras compõem um mercado independente[1] e exercem papel indispensável na cadeia de abastecimento, sobretudo no atendimento a farmácias independentes e municípios do interior do país.

A omissão da CMED tem gerado problemas relevantes: quando fabricantes vendem seus medicamentos no limite do teto (PF), não resta margem suficiente para que distribuidoras operem com sustentabilidade. Essa margem é fundamental para cobrir impostos, logística, armazenamento e garantir a viabilidade do negócio[2].

As distorções tornam-se ainda mais evidentes em contextos de pressão sobre os preços, como durante a pandemia de Covid-19. Naquele período, com aumento nos custos de insumos e alta demanda, fabricantes praticaram preços próximos ou no limite do PF. Nesses casos, distribuidoras se viram obrigadas a optar entre deixar de atuar — comprometendo o abastecimento, especialmente no interior — ou revender com pequena margem acima do PF, ficando sob risco permanente de sanção pela CMED.

Mesmo diante de sua omissão regulatória, a CMED tem aplicado a penalidade prevista no art. 9º, V, b, da Resolução 2/2018 aos distribuidores, tratando-os como se fossem fabricantes que descumpriram o teto de preço.

Como resultado, distribuidoras no país inteiro vêm recebendo multas milionárias, especialmente relacionadas a operações realizadas durante a pandemia, quando a aquisição junto aos fabricantes se deu no teto ou próximo dele. Nessas situações, ao revenderem os medicamentos com a margem mínima para cobrir seus custos, as distribuidoras acabaram ultrapassando o teto do PF, ao qual, indevidamente, seguem submetidas.

A CMED tem agravado essas penalidades com base no art. 13, II, e, da Resolução CMED 2/2018, ao considerar que houve dano coletivo ou difuso por se tratar de medicamentos usados no enfrentamento da Covid-19. Essa interpretação ignora que o verdadeiro dano coletivo teria ocorrido caso os medicamentos não tivessem sido distribuídos, resultando em desabastecimento. Com efeito, houve desabastecimento de diversos medicamentos na pandemia[3], mas o cenário seria ainda muito pior sem a proatividade do setor de distribuição.

É importante destacar que as distribuidoras, como empresas autônomas, não são obrigadas a vender ao poder público. Se não tivessem se mobilizado, os medicamentos não teriam chegado a muitas regiões. Se houve sobrepreço pontual, ele pode ser resolvido com devolução de valores — o que não caracteriza, por si só, dano coletivo.

As multas aplicadas podem superar R$ 14 milhões cada, considerando os parâmetros do art. 57 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que prevê multa entre 200 e 3.000.000 vezes o valor da UFIR ou índice equivalente.

A causa estrutural dessas sanções desproporcionais está na ausência de definição, pela CMED, de teto específico para o elo da distribuição. Embora fabricação e distribuição sejam etapas distintas, a CMED trata ambas como se fossem uma só, sujeitando-as ao mesmo teto (PF).

As distribuidoras são empresas independentes das fabricantes, compram com incidência de ICMS e revendem para farmácias e órgãos públicos em regiões onde a indústria não atua diretamente. A lógica aplicada ao varejo — onde existe um preço teto próprio (PMC), superior ao PF, justamente para contemplar os custos do novo elo da cadeia — deveria valer também para a distribuição.

A eficácia da regulação por preços teto depende da sua aderência à realidade do mercado. Tetos excessivamente baixos podem gerar desabastecimento[4], já que nenhum agente econômico é obrigado a operar com prejuízo. Por isso, os preços teto costumam ser superiores à média de mercado, permitindo margem de comercialização.

Durante a pandemia, essa lógica se inverteu. Os preços praticados pelas indústrias já estavam no limite, o que inviabilizou a inclusão de margens pelas distribuidoras. A regulação da CMED, nesses casos, mostrou-se insensível às condições reais do mercado e às dificuldades impostas pela crise sanitária.

Hoje, muitas penalidades relacionadas à pandemia estão em fase de cobrança, embora tenham origem em um contexto absolutamente atípico. Segundo a Repórter Brasil, entre 2020 e 2022, o número de multas aplicadas pela CMED triplicou em relação ao triênio anterior, alcançando 756 sanções e mais de R$ 276 milhões[5]. Nos três anos anteriores à pandemia, foram 297 sanções, somando R$ 76 milhões.

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Distribuidoras punidas nesse contexto agiram com base na expectativa de que a CMED reconheceria a excepcionalidade do momento e respeitaria o que determina a própria Lei 10.742/2003 quanto à definição de margens específicas para a distribuição.

Contudo, a CMED não apenas manteve postura punitiva, como deixou de emitir qualquer norma excepcional para flexibilizar os tetos no período da calamidade pública reconhecida pelo Decreto Legislativo 6/2020. A omissão comprometeu a segurança jurídica de empresas que apenas garantiram o abastecimento e buscaram manter suas operações com margem mínima de sobrevivência.

Diante desse cenário, torna-se urgente a regulamentação da margem de comercialização específica para distribuidoras, nos termos do art. 6º, V, da Lei 10.742/2003. É preciso diferenciar condutas oportunistas de situações regulares de mercado. O Direito Administrativo Sancionador exige respostas proporcionais e contextualizadas — o que claramente não ocorreu durante a pandemia.

Muitas penalidades não teriam sido aplicadas se a CMED tivesse regulamentado, a tempo, um teto próprio para distribuidoras, superior ao PF. Este deve incidir exclusivamente sobre fabricantes, como o próprio nome indica.

Ainda é possível corrigir distorções. A Resolução CMED 2/2018, em seus arts. 30 a 38, permite a celebração de Compromisso de Ajustamento de Conduta (CAC), instrumento que suspende o processo sancionador e, uma vez cumprido, leva ao arquivamento sem sanção.

Diante do acúmulo de multas milionárias, é recomendável que a CMED estabeleça regime excepcional para regularização das infrações relacionadas à pandemia. Uma alternativa seria a criação de um programa especial de regularização setorial — um “Refis regulatório” — na forma de TAC ou CAC coletivo, com adesão voluntária.

Esse mecanismo poderia prever redução expressiva das multas condicionada à adoção de medidas de reforço do compliance regulatório, como treinamentos obrigatórios, revisão de processos internos e cláusulas específicas nos contratos com a cadeia. Experiências semelhantes foram adotadas por Senacon, Banco Central e Aneel, com redução de sanções para infrações de baixo impacto ou cometidas em contextos excepcionais.

A atuação da CMED durante a pandemia revelou um descompasso inaceitável entre a regulação e a realidade do mercado. Ao deixar de regulamentar a margem de comercialização das distribuidoras — embora expressamente prevista em lei — e, ainda assim, aplicar sanções milionárias a empresas que atuaram para evitar o colapso do abastecimento, a Câmara impôs uma penalidade que, na prática, pune a responsabilidade.

É urgente reparar essa distorção, seja por meio da regulamentação específica do art. 6º, V, da Lei 10.742/2003, seja pela criação de um regime excepcional de regularização, como já adotado por outras agências reguladoras. O setor precisa de regras claras, proporcionais e viáveis — e não de punições que ignoram o contexto em que foram tomadas decisões difíceis, muitas vezes em nome da continuidade do cuidado com a vida.

[1] PINTO, Christoffer Alex Souza. A indústria farmacêutica da América Latina: um estudo comparativo. 2014. 154 f. Dissertação (Mestrado em Economia) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2014.

[2] MENDES, Alexandre Cavalcante. Inovação tecnológica na indústria farmacêutica: a regulação de medicamentos no Brasil e o acesso a medicamentos. 2014. 171 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília, Brasília, 2014.

[3] NAGASHIMA, Renata; GIOVANNI, Pablo. Desabastecimento de medicamentos em farmácias preocupa moradores do DF. Correio Braziliense, 26/05/2022. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2022/05/5010658-desabastecimento-de-medicamentos-em-farmacias-preocupa-moradores-do-df.html. Acesso em: 02/07/2025.

VALENTE, Janaina. Covid-19: relatório aponta falta de medicamentos nos estados. Agência Brasil, Brasília, 27/06/2020. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-06/covid-19-relatorio-aponta-desabastecimento-de-remedios-nos-estados. Acesso em: 02/07/2025.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Falta de remédios prejudica tratamento da Covid-19 nas UTIs, alertam médicos. Agência Câmara de Notícias, Brasília, 16/07/2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/676910-falta-de-remedios-prejudica-tratamento-da-covid-19-nas-utis-alertam-medicos/. Acesso em: 02/07/2025.

ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico. SUS enfrenta grave crise com falta de medicamentos para Covid-19. ICTQ – Política Farmacêutica, 29/06/2020. Disponível em: https://ictq.com.br/politica-farmaceutica/1726-sus-enfrenta-grave-crise-com-falta-de-medicamentos-para-covid-19. Acesso em: 02/07/2025.

[4] PONTES, M.; LEITE, S. N.; RIBEIRO, A. A. Análise dos preços regulados e praticados para os medicamentos mais consumidos no Brasil. Economia e Sociedade, v. 33, n. 1, p. 201–219, jan. 2024.

[5] JUNQUEIRA, Diego. Multas a farmacêuticas por remédio com preço abusivo triplicam e passam de R$320 mi. Repórter Brasil, 19/12/2022. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2022/12/multas-a-farmaceuticas-por-remedio-com-preco-abusivo-triplicam-e-passam-de-320-mi/. Acesso em: 02/07/2025.

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