A falta de classificação indicativa do conteúdo veiculado no YouTube

O Ministério da Justiça e Segurança Pública realizou recentemente consulta pública relativa à nova portaria da Política Pública de Classificação Indicativa, com objetivo de “atualizar o normativo em vigor, visto tratar-se de política pública continuada, que tem como princípios basilares a proteção integral de crianças e adolescentes e o respeito à liberdade de expressão”.

Como anotaram Marcela Mattiuzzo, Isabella Aragão e Clara Duarte, as plataformas digitais entram no radar da classificação indicativa. Era fundamental – realçaram – “ampla participação na discussão sobre o tema, de modo a possibilitar a consolidação de um modelo adequado e funcional de classificação indicativa, que consiga atingir os objetivos pretendidos”.

Ao longo de 60 dias, a consulta recebeu 234 contribuições, das quais, até a manhã do dia 17 de junho, 19 haviam sido aprovadas, 36 foram recusadas e 179 encontravam-se pendentes de avaliação.

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É positivo que o artigo 48 da proposta de regulamento estabeleça a incidência de classificação indicativa sobre “os aplicativos de redes sociais ou de hospedagem de conteúdos e vídeos”, amparada, dentre outros critérios, na existência de “curadoria automatizada, personalização de e recomendação de conteúdo, o impulsionamento de conteúdo” e o “direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente”.

A minuta da portaria renova, porém, a exclusão do processo regulatório de classificação indicativa dos conteúdos produzidos pelos usuários de redes sociais ou das plataformas de hospedagem de conteúdos e vídeos, que não são classificáveis individualmente, mas, apenas, levados em consideração na classificação geral do aplicativo ou site (artigos 6º, V; e 48, §2º).

Temos procurado problematizar a participação das crianças nas plataformas digitais, especialmente, no que diz aos canais de YouTube que exibem a vida privada de crianças a crianças[1], a partir da compreensão de que os influenciadores mirins se tornaram “modelos do que ser e de como estar no mundo”[2], referências estruturantes da construção cultural da infância idealizada e, assim, dos projetos subjetivos dos receptores[3].

Com esse olhar, de preocupação com o (não tão) livre desenvolvimento da personalidade das crianças nestes tempos, e tendo em conta que as reações legislativas e judiciais não dão conta da aceleração social mobilizada pelas tecnologias digitais, desenvolvida em “um regime temporal apertado e rígido, que não é articulado em termos éticos”[4], observamos que o YouTube em particular, especialmente por permitir acesso gratuito e possuir um acervo audiovisual incomparável, se tornou uma espécie de nova TV para a audiência infantil; mas que o negócio da plataforma de vídeos consiste precisamente em fomentar uma cultura participativa, em que os participantes atuam, simultaneamente, como consumidores, críticos e produtores de conteúdo[5].

Quer dizer, a proposta de novo regulamento conserva à margem do processo de classificação indicativa o conteúdo predominante na instância de mídia mais consumida pelas crianças.

Embora a plataforma de vídeos afirme-se, nos termos de uso e em sua atuação política, um serviço de compartilhamento, sem responsabilidade editorial pela qualidade e pela adequação etária do conteúdo que difunde e explora, aderimos à noção de que o YouTube não apenas modera, como modela a produção dos participantes, além de impulsionar certos produtos em detrimento de outros, devendo, pois, ser compreendido como coprodutor[6].

Os objetivos inerentes a essa posição ambígua da plataforma vão de encontro à proteção integral dos melhores interesses das crianças, afinal, em última análise as restrições impactam negativamente o alcance dos produtos veiculados na plataforma. Por isso, os termos de serviço se prestam, acima de tudo, a propor a desoneração do meio, e não à tutela da audiência vulnerável.

Já se ponderou, ademais, que o YouTube Kids, não é particularmente eficaz em afastar as crianças da plataforma principal e, ainda, que o YouTube condiciona a disponibilidade de certas ferramentas de proteção à assinatura paga, o que restringe a eficácia do modelo de autorregulação[7]; e que, de qualquer sorte, o controle parental não é uma bala-de-prata[8]. Isso induz a questionar se a classificação incidente sobre a plataforma em si será capaz de afastar as crianças de conteúdo inadequado para certas faixas etárias na nova TV.

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Nesse sentido, ainda que seja virtualmente impossível aplicar a política de classificação indicativa sobre todo e qualquer conteúdo produzido por usuário das plataformas digitais, essa importante política regulatória não deveria ignorar conteúdos audiovisuais consumidos por milhões de crianças no YouTube sob o pretexto de existir classificação geral da plataforma.

Métricas de popularidade como assinaturas e visualizações ou de arrecadação comercial – se houvesse alguma transparência nesse aspecto –, serviriam como condições legítimas para justificar não apenas a incidência de classificação etária, mas, ainda, o ônus devido à plataforma, isto é, de realizar a autoclassificação ou de submeter os conteúdos mais difundidos à classificação pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Adicionalmente, sem negar que essa proposição exige reflexão mais profunda, é preciso repensar as divisões etárias previstas no regulamento da classificação indicativa, especificamente, a ausência de faixa intermediária entre a audiência livre e a classificação para 10 anos ou mais. Esse salto desconsidera a existência de diferentes etapas de desenvolvimento compreendidas dentro da própria infância, reconhecida em marcos contemporâneos, notadamente, no Marco Legal da Primeira Infância (Lei 13.257/2016).

[1]A Nova TV – A Infância e o desenvolvimento da personalidade das crianças sob a influência do YouTube. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2025.

[2] TOMAZ, Renata Cristina de Oliveira. O que você vai ser antes de crescer? YouTubers, infância e celebridade, p. 199. Tese de Doutorado. Escola de Comunicação/UFRJ. Rio de Janeiro, 2017. Disponível em < https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=5001020 >.

[3] ANDRADE, Marcelo de. ANDRADE, Marcelo de. O brincar mediado e midiatizado: uma proposta antropossemiótica sobre os rituais de consumo dos influenciadores mirins e suas articulações de sentidos na constituição de um modelo de negócio, Tese de Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Escola de Comunicação e Artes/USP; São Paulo, 2024

[4] ROSA, Hartmut. Alienação e Aceleração: por uma teoria crítica da temporalidade tardo-moderna. Tradução de Fábio Roberto Lucas. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2022. 

[5] BURGESS, Jean; e GREEN, Joshua. YouTube e a Revolução Digital: como o maior fenômeno da cultura participativa está transformando a sociedade. Tradução: Ricardo Giassetti. São Paulo: Aleph, 2009.

[6] TOMAZ, Renata. Plataformas coprodutoras de conteúdo infantil: governança e moderação no YouTube. Rumores, n. 34, v. 17, julho – dezembro 2023.

[7] WILSON, Heather (2020). YouTube is Unsafe for Children: YouTube’s Safeguards and the Current Legal Framework are Inadequate to Protect Children from Disturbing Content. Seattle Journal of Technology, Environmental, & Innovation Law: Vol. 10: Iss. 1, Article 8, 2020.

Disponível em < https://digitalcommons.law.seattleu.edu/sjteil/vol10/iss1/8 >

[8] STOILOVA, Monica Bulger; LIVINGSTONE, Sonia. Do parental control tools fulfil family expectations  for child protection? A rapid evidence review of the contexts and outcomes of use. Journal of Children and Media (2023). Disponível em < https://doi.org/10.1080/17482798.2023.2265512 >

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