A ilegalidade da Portaria 1.118/24 do Ministério da Agricultura

A previsibilidade é o fio condutor de toda ordem jurídica saudável. Nas relações entre Estado e empresas, sobretudo no ambiente regulatório, ela representa mais do que um conforto institucional — é a garantia mínima de racionalidade, coerência e confiança. Tão ou mais importante que o texto legal é sua aplicação pelos tribunais.

Daí a relevância de julgado recente da Justiça Federal em relação aos limites do poder fiscalizatório do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) da atividade agroindustrial em nosso país.

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Com efeito, a sentença proferida no Processo 5013914-64.2024.4.04.7208/SC reconheceu a ilegalidade da Portaria SDA/Mapa 1.118/2024 ao impedir que a Administração execute sanções de suspensão de atividades fabris quando não demonstrado risco sanitário atual. A decisão vai além do caso concreto: reposiciona o debate sobre os limites do poder de polícia no campo sanitário e industrial, reafirmando que sanção não pode ser instrumento de retaliação ou de intimidação institucional.

O cerne da controvérsia estava justamente na tentativa da Administração, com base em ato administrativo ilegal, de aplicar medidas extremas – como a interdição de plantas industriais – sem comprovar risco à saúde pública ou embaraço contemporâneo à fiscalização. Trata-se de evidente desvio de finalidade e violação ao princípio da legalidade, incompatível com o direito administrativo sancionador moderno, que deve se inspirar nas garantias do devido processo e da proporcionalidade.

Mais do que isso, o juízo reconheceu a retroatividade benéfica da Lei 14.515/2022, que revogou o artigo 2º da Lei 7.889/1989 e redesenhou o regime sancionatório no campo agropecuário. Em linha com doutrina consolidada e com a jurisprudência do STJ, o juiz afirmou que os preceitos do Direito Penal, enquanto expressão das liberdades fundamentais, são aplicáveis à seara administrativa — inclusive no que tange à retroatividade da norma mais benéfica. Uma obviedade técnica, mas ainda alvo de resistência no interior de certas estruturas regulatórias.

A decisão traz outro aspecto que merece reflexão: a relevância da temporalidade no exercício do poder punitivo. A própria Administração, por meio do Despacho 1.155/2021, havia reconhecido, durante a pandemia de Covid-19, que não havia fundamento sanitário para a paralisação das plantas. A revogação dessa diretriz, dois anos após o fim do estado de emergência, sem qualquer justificativa técnica adicional, nada mais é do que a confissão da ausência de perigo na demora, elemento essencial da medida.

Adicionalmente, o magistrado utiliza como razão de decidir a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB), determinando que a Administração Pública pondere os efeitos de sua atividade regulatória.

A atuação reiterada do Mapa, sob o pretexto de resgatar um “rigor perdido”, termina por romper as premissas básicas do processo administrativo: contraditório, motivação, vedação ao arbítrio e à reformatio in pejus. Mais do que nulidades formais, são sintomas de um desequilíbrio estrutural entre a autoridade reguladora e o jurisdicionado. Além de promover o famoso “efeito bumerangue” tão conhecido pela Análise Econômica do Direito, ou seja, a promoção de efeitos inversos dos desejados.

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Ao reiterar a limitação material do poder punitivo estatal, a Justiça Federal cumpre seu papel institucional e reafirma uma mensagem: eficiência, previsibilidade e segurança jurídica não são valores secundários. São o que impede que a ordem administrativa se converta em arbitrariedade legalizada ou que cause prejuízos à sociedade.

Sanção sem lastro técnico ou jurídico sólido não corrige desvios; é puro abuso regulatório e, com isso, produz insegurança, paralisa investimentos e enfraquece a confiança na capacidade do Estado de regular com legitimidade. Que o caso sirva como ponto de inflexão para uma atuação regulatória do MAPA, inclusive para que revogue tal ato administrativo ilegal e inconstitucional.

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