Pejotização e contrato de franquia

Nos últimos anos, o STF tem consolidado uma nova leitura constitucional sobre a organização do trabalho, reconhecendo a legitimidade de modelos contratuais diversos da relação de emprego celetista. A virada se deu com o julgamento da ADPF 324[1] e do RE 958.252[2] (Tema 725), quando a corte validou a terceirização em qualquer etapa da cadeia produtiva e outras formas de divisão do trabalho.

Isso foi reforçado em outros julgados, como a ADC 48[3], a ADI 3.961[4] e a ADI 5.625[5], em que o STF reafirmou que a Constituição assegura liberdade organizacional às empresas e que nem toda prestação de serviços configura uma relação de emprego.

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Ao reconhecer a validade de vínculos contratuais fundados na autonomia privada e em lógicas empresariais legítimas, o STF vem afirmando que a proteção ao trabalho deve coexistir com os princípios da livre iniciativa e da liberdade contratual.

Apesar dessa evolução, há decisões de instâncias inferiores em sentido contrário, reconhecendo vínculos empregatícios em contextos que, segundo o STF, deveriam ser regidos por relações civis ou empresariais. A quantidade crescente de reclamações constitucionais apresentadas ao STF — mais de 1.700 apenas no primeiro semestre de 2024 — levou o ministro Gilmar Mendes a classificar essa conduta como uma “renitência” da Justiça do Trabalho em aplicar a jurisprudência do STF[6].

Recentemente, o STF deu mais um passo rumo à pacificação da matéria ao reconhecer a repercussão geral no ARE 1.532.603, que originou o Tema 1.389[7]. Nele, será deliberado sobre a competência e o ônus da prova em processos que discutem a existência de fraude em contratos civis ou comerciais de prestação de serviços, bem como sobre a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade. Assim, o STF determinou a suspensão de todos os processos que tratem dessas questões.

Conforme destacado pelo próprio STF[8], os contratos civis e comerciais de prestação de serviços objeto do Tema 1.389 são utilizados em diversos setores, como representação comercial, corretagem de imóveis, advocacia, entre outros.

No caso do ARE 1.532.603, discute-se a validade de contratos de franquia, mas a definição da questão, conforme ressaltado pelo relator, não se limita a um tipo contratual, mas envolve os parâmetros de licitude e a distribuição do ônus probatório de diferentes modelos contratuais alternativos à relação de emprego.

Apesar de a controvérsia não se restringir ao contrato de franquia, é relevante compreender as particularidades que o tornam uma forma autônoma de organização produtiva, distinta da relação de emprego.

O contrato de franquia é regulado pela Lei 13.966/2019, que sucedeu a Lei 8.955/1994, e consiste na cessão, pelo franqueador ao franqueado, do direito de uso da marca, patente, know-how e modelo de negócio, o que se dá mediante remuneração, como taxas iniciais e royalties, e tem por objetivo a replicação de uma estrutura comercial consolidada, com suporte técnico e orientação padronizada[9].

A franquia é, assim, uma técnica de expansão empresarial baseada na transferência de conhecimento e identidade mercadológica, operada por empresários juridicamente independentes, e não por trabalhadores subordinados.

Os contratos de franquia são reconhecidos por sua natureza jurídica complexa, justamente por englobarem, em um único instrumento, diversas camadas de relações jurídicas. Neles coexistem elementos de propriedade intelectual, como o licenciamento de marcas e patentes; de prestação de serviços, como o suporte técnico, treinamento e assistência contínua; além de relações comerciais típicas de compra e venda, como o fornecimento de insumos.

Diante dessa multiplicidade de obrigações e interesses, não é incomum que surjam divergências entre as partes quanto à extensão de seus direitos e deveres[10]. A interpretação dessas cláusulas exige, portanto, olhar atento às particularidades contratuais e ao equilíbrio da relação negocial, sem automaticamente transpor categorias jurídicas próprias do Direito do Trabalho para um contexto que opera sob a lógica do Direito Empresarial.

A ausência de vínculo empregatício entre franqueador e franqueado não é uma presunção, mas uma característica jurídica expressamente reconhecida pela legislação e pela doutrina[11]. Trata-se de um contrato híbrido, de natureza onerosa, bilateral, comutativa, consensual e de adesão.

Assim, ao contrário do que ocorre nas relações de emprego, não há subordinação pessoal, nem inserção do franqueado na estrutura organizacional do franqueador. O que existe é uma coordenação técnica e mercadológica, orientada para garantir a uniformidade da rede franqueada e proteger o prestígio da marca.

A ideia de que o contrato de franquia poderia mascarar uma relação de emprego parte de uma confusão conceitual entre padronização e subordinação. É certo que há controle de qualidade e exigência de cumprimento de normas operacionais por parte do franqueador, o que abre margem para mencionar que a autonomia do franqueado é relativa[12].

Todavia, isso decorre da lógica própria da franquia, voltada à coesão de uma rede e à proteção do capital simbólico da marca, e não implica submissão hierárquica ou pessoal típica da relação laboral. O franqueado, inclusive, assume riscos empresariais próprios, com autonomia na gestão do negócio, e responde por suas obrigações civis, fiscais e trabalhistas.

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A relevância do contrato de franquia transcende o plano jurídico e alcança a esfera econômica. Considerando franquias de médio porte, com investimento inicial em torno de R$ 360 mil, cada unidade pode ser responsável pela geração de 18,8 mil a até 75,5 mil postos de trabalho adicionais, a depender do setor.

Somando-se a atuação direta do próprio franqueado-investidor, que se ocupa da gestão do negócio, o número de pessoas diretamente ocupadas por esse modelo pode chegar a 80,2 mil[13].

Mais: levantamento realizado com base em 78 reclamações constitucionais envolvendo contratos de franquia ajuizadas perante o STF revelou que 90% dos ex-franqueados possuem ao menos ensino superior, sendo que 53% contam com especialização ou mestrado.

Entre as formações mais recorrentes estão administração (46%), direito (15%), engenharia (11%) e marketing (7%). O valor histórico das causas desses processos alcança cerca de R$ 124,5 milhões, média de R$ 1,64 milhão por processo. Já o faturamento médio declarado gira em torno de R$ 18,4 mil, podendo chegar a R$ 43,6 mil nos casos de maior desempenho econômico.

Esses números mostram o perfil hipersuciente de franqueados e que a franquia é mais do que uma estrutura contratual: trata-se de uma forma de descentralização econômica, incentivo à formalização e estímulo ao empreendedorismo.

Nesse contexto, destaca-se que o Direito deve estar atento às transformações sociais e econômicas. A aplicação das leis, sobretudo no campo trabalhista, precisa considerar os efeitos concretos que suas decisões produzem, inclusive no que se refere ao incentivo (ou não) à livre iniciativa, à geração de empregos e à segurança de contratos.

Reduzir modelos empresariais complexos, regulados por legislação específica e amplamente praticados, à presunção de fraude é comprometer não apenas a lógica jurídica, mas também o desenvolvimento econômico e a função social da empresa. Por isso, é fundamental que o julgamento do Tema 1.389 pelo STF reafirme que a franquia não pode ser confundida com vínculo empregatício, sob pena de desestabilizar um modelo de organização da atividade produtiva.

Dessa forma, o julgamento do Tema 1.389 representa mais do que a solução de uma controvérsia pontual: é uma oportunidade para o STF reafirmar que a liberdade contratual e a autonomia empresarial não são inimigas da proteção ao trabalho, mas de componentes legítimos da ordem constitucional.

Ao distinguir modelos negociais estruturados da relação de emprego, a corte poderá oferecer a segurança jurídica necessária para que empreendedores e trabalhadores prosperem com clareza de papéis e responsabilidades.

[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 324. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. 30 de agosto de 2018. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750738975. Acesso em: 04 abr. 2025. p. 1-4.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 958252. Relator: Ministro Luiz Fux. 30 de agosto de 2018. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750817537. Acesso em: 04 abr. 2025. p. 8.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 48. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. 16 de abril de 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15343120733&ext=.pdf. Acesso em: 04 abr. 2025. p.28-37.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3961. Relator: Ministro Roberto Barroso. 15 de abril de 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752871041. Acesso em: 04 abr. 2025. p. 29-38.

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5625. Relator: Ministro Edson Fachin. 28 de outubro de 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15350407676&ext=.pdf. Acesso em: 04 abr. 2025. p. 43-60.

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação Constitucional n. 73359. Relator: Ministro Gilmar Mendes. 08 de novembro de 2024. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15371955286&ext=.pdf. Acesso em: 04 abr. 2025. p. 1-2.

[7] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. ARE 1.532.603. Relator: Ministro Gilmar Mendes. 14 de abril de 2025. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15375825805&ext=.pdf. Acesso em: 24 jun. 2025. p. 1-3.

[8] NETTO, Paulo Roberto. STF suspende processos em todo o país sobre licitude de contratos de prestação de serviços. Supremo Tribunal Federal, 14 abr. 2025. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-suspende-processos-em-todo-o-pais-sobre-licitude-de-contratos-de-prestacao-de-servicos/. Acesso em: 25 jun. 2025.

[9] SCHMITT, Cristiano Heineck. Contrato de Franquia Empresarial (Franchising). Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 17, p. 57–70, 1999. p. 58–60

[10] BIANA, Higor da Silva; SANT’ANNA, Leonardo da Silva. Apontamentos sobre a Arbitragem no Contrato de Franquia. Scientia Iuris, v. 21, n. 1, p. 125–154, 2017. p. 127

[11] LIMA, Marcianita Lopata De; MAURICIO, Bruno Alexander. Os contratos de franquia e a cláusula compromissória: colisão entre o princípio da proteção e o princípio dos contratos vinculativos. Revista Percuro Unicuritiba, v. 1, n. 42, p. 89–105, 2022. p. 92–94

[12] LIMA, Marcianita Lopata De; MAURICIO, Bruno Alexander. Os contratos de franquia e a cláusula compromissória: colisão entre o princípio da proteção e o princípio dos contratos vinculativos. Revista Percuro Unicuritiba, v. 1, n. 42, p. 89–105, 2022. p. 94

[13] CONTI, Thomas V.; YEUNG, Luciana. Justiça do Trabalho e STF: uma análise jurimétrica e econômica do comportamento das cortes diante de contratos empresariais e de franquia no período 2018-2023. 2024. p. 34

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