Limites à assinatura digital Gov.br em viagens de menores

A transformação digital da Administração Pública tem promovido avanços na desburocratização e nos serviços notariais, ampliando possibilidades de arquivamento, segurança informacional e gestão de dados, em sintonia com a metamorfose das demandas sociais.

Porém, a recente decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na Consulta 0003850-52.2024.2.00.0000, reacendeu o debate sobre limites legais dessas inovações, quando direitos fundamentais estão em jogo: o caso trata de autorizações de viagem para crianças e adolescentes.

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A AEV foi criada para facilitar e desburocratizar o procedimento para conseguir a autorização de viagens nacionais e internacionais de crianças e adolescentes. Desde 2021, já foram solicitadas mais de 20 mil autorizações em todo o país para os tabelionatos de notas. No primeiro semestre de 2024, foram emitidas 6.945 autorizações, o que representa um aumento de 74% em relação ao mesmo período de 2023. E esse número aumenta no período de férias escolares.

O CNJ regulamentou a autorização por meio do Provimento 103/20, em parceria com o Colégio Notarial do Brasil, o que representou um avanço significativo na proteção de menores, conforme dispõe a legislação especial. Isto, pois, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), os deslocamentos dentro do território nacional e para o exterior estão sujeitos a regulamentações específicas.

Em 2019, o caput do artigo 83 foi alterado, elevando a idade de 12 para 16 anos, conforme a Lei 13.812/19, originada do PL 6.699/09, com foco no combate ao desaparecimento de pessoas.

Em razão dessa majoração etária e necessidade de AEV, a empresa Nova Forma Viagens e Turismo Ltda. apresentou consulta ao CNJ solicitando esclarecimento sobre a possibilidade de aceitar assinaturas digitais Gov.br nas autorizações de viagem de menores desacompanhados, com base na Lei 14.063/20.

A empresa, que realiza viagens de formatura e culturais com crianças e adolescentes, passou a receber diversos questionamentos de genitores sobre a aceitação da AEV assinada via Gov.br, por entenderem haver segurança e rastreabilidade, com respaldo no artigo 3º da Lei 13.726/18.

É provável que a consulente tenha se referido ao inciso I, sobre dispensa de reconhecimento de firma. Com o objetivo de sanar as dúvidas de seus clientes e resguardar-se de eventual responsabilização, decidiu solicitar a suscitação de dúvida.

A AEV, regulamentada pelo Provimento CNJ 103/20, deve ser emitida exclusivamente via e-Notariado, por ato notarial, conforme os artigos 1º e 2º. Por isso, é indispensável a atuação do tabelião de notas, sendo incompatível o uso da assinatura Gov.br, como reconhecido pelo CNJ.

De acordo com as informações do site do próprio governo federal, a assinatura realizada pela plataforma Gov.br, regulamentada pelo Decreto 10.543/20, alterado pelo Decreto 10.900/21, depende de ser aceita pelas partes envolvidas ou por quem recebe o documento. Isso é diferente da assinatura qualificada, que é feita em conjunto com um certificado ICP-Brasil e possui o nível mais alto de segurança, conforme a Lei 14.063/20.

Além disso, conforme a decisão aponta, um dos motivos para a exigência do reconhecimento de firma é evitar o cometimento de fraudes, algo que a assinatura do Gov.br não garante, pois utiliza outros meios de verificação da autoria e integridade dos documentos e é considerada do tipo avançada.

A decisão do CNJ é, portanto, um marco para esse cenário, pois reforça dois pontos importantes. O primeiro é que, sem a mediação do tabelião pela videoconferência, perde-se a fé pública, pois o tabelião é o profissional revestido dessa atribuição para a AEV. O segundo é que essa atividade preserva as partes de fraudes, como as diversas que vêm acontecendo na plataforma do Gov.br, sendo a mais recente a Operação Face Off da Polícia Federal.

A dispensa do reconhecimento de firma, prevista na Lei da Desburocratização e mencionada pelos clientes da consulente, aplica-se apenas ao artigo 3º, inciso VI, quando os pais estão presentes no embarque, o que não se aplica às viagens de formatura para menores desacompanhados.

A menção ao inciso I parece ter sido feita de forma equivocada. Por isso, não há dúvida quanto à norma aplicável: pelo princípio da especialidade (lex specialis derogat legi generali), prevalece o ECA, que exige autorização nos termos dos artigos 83 a 85.

O ministro Luís Roberto Barroso, em um leading case sobre a proteção e tutela da criança e adolescentes, muito bem definiu a questão sobre a “prioridade” e como a mesma deve ser entendida quando falamos, tratamos e protegemos crianças e adolescentes. A interpretação deve ser no sentido de dar uma tutela especial, principalmente quando em conflito com outra norma, em razão da sua fragilidade e vulnerabilidade dos indivíduos sob proteção do Estado.

No caso em discussão, permitir a adoção da assinatura do Gov.br é, além de negar dispositivos especiais, como o ECA, diretrizes de segurança para níveis de assinatura já instaurados e a fé pública dos notários, ignorar também o princípio previsto no artigo 227 da Constituição, conhecida também como Constituição Cidadã, e todo o histórico[1] de luta pelos direitos dos menores.

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Ainda na questão da fé pública Costa e Rocha destacam que a presença dos notórios é essencial, para evitar fraudes, pois atendem a uma função de “promoção da paz social”, sendo os mesmos indispensáveis para atender as demandas atuais, como é o caso dos pedidos de AEV que poderão ficar vulneráveis sem uma assinatura eletrônica avançada.

Isto, pois, embora haja uma segurança válida pelas outras formas de assinatura, em razão dos códigos de hash e de segurança, somente o tabelião é revestido de fé pública e, se “não fosse a atividade notarial, não fosse ela protegida pelo Judiciário e pelo Legislativo”, o formato digital pode confirmar, mas quem dará essa segurança, perante a sociedade, é somente a atividade notarial pela videoconferência, pois é o instrumento capaz de garantir que os princípios notariais permaneçam intactos, apesar das transformações digitais.

Além disso, entre janeiro e abril de 2024, o Brasil registrou que, nos casos de tráfico de pessoas, 86,7% das vítimas eram menores de 16 anos, o que evidencia a necessidade de mecanismos rigorosos de controle documental.

Segundo Posner, em Economic Analysis of Law, o Direito deve ser estruturado com uma racionalidade econômica, portanto, a função do sistema jurídico também deve ser reduzir os custos de transação sociais, promovendo uma maior eficiência do setor. A decisão do CNJ que manteve a presença da atuação notarial para a autorização de viagens, quando submetida à análise econômica do direito, pode ser ilustrada pelas noções dos custos de front-end e back-end.

O primeiro custo podemos identificar como os gastos com as formalidades legais para autenticação notarial, e o segundo, como os relacionados às resoluções futuras que envolvam o Judiciário.

Por mais que pareça atrativa para a população, em especial aos genitores, a eliminação dos custos iniciais, os números de fraudes e os riscos envolvendo crianças e adolescentes não podem ser ignorados. Pois estes são os custos de back, e é inevitável que as discussões judiciais envolvendo a autenticidade do documento irão acontecer, e possivelmente até aumentar.

Os dados reforçam a imprescindibilidade da AEV, com intervenção do tabelião, para assegurar a fé pública e a identificação dos responsáveis legais, coibindo fraudes, sequestros e movimentações ilícitas de menores. Seu rigor expressa o compromisso constitucional com a proteção integral da infância e a segurança jurídica no trânsito de crianças e adolescentes.

A decisão do CNJ é, portanto, um marco importante ao reafirmar esse princípio, mesmo diante dos avanços tecnológicos.

[1] “A história da “proteção” da infância no Brasil inicia-se na década de 1920 e, curiosamente, não tinha por objetivo o desenvolvimento saudável do menor. Ao contrário, voltava-se para a tutela da ordem urbana e da segurança pública, “perturbadas” pela presença de menores desvalidos e pedintes perambulando pelas ruas.Com esse fim, e ao longo de muitas décadas, a política pública desenvolvida nesta matéria pautou-se primordialmente pela retirada das crianças carentes das ruas e por sua internação compulsória em instituições (tal política será referida, doravante, como institucionalização).” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 778.889/PE. Relator: Ministro Roberto Barroso

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