“Os deputados e senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.” Essa é a redação do artigo 53, § 1º, da CF, com redação dada pela EC 35/2001. Essa norma constitucional já foi objeto de colunas passadas (aqui, aqui e aqui). Da última vez em que se escreveu sobre o assunto, a notícia era a “reinserção” da prerrogativa de foro para o julgamento de ex-parlamentares por crimes praticados no cargo e em razão das funções.
Tradicionalmente, quando se fala em prerrogativa de foro, todas as atenções se voltam para as causas de natureza penal, possivelmente a partir de uma interpretação limitada pela combinação com o artigo 102 da CF. Ocorre que – basta reler o texto do artigo 53, § 1º, da CF – a prerrogativa parlamentar do foro não se limita aos procedimentos penais. A rigor, aplica-se também a causas civis em que os parlamentares sejam réus.
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As regras de interpretação jurídica reforçam esse entendimento. Entre elas, está a que determina que a forma correta de interpretar as normas de um artigo pressupõe colocar o caput como centro de gravidade, e considerar os parágrafos meras subdivisões do tema central nele tratado. Daí, a compreensão do artigo de uma norma gira ao redor do caput, que é o seu centro de referência. Não se interpreta uma norma de forma só linear (por linhas), mas sim de forma sistemática e dando sentido harmônico a cada uma de suas partes.
Se é assim, topograficamente, o § 1º se submete à previsão do caput do artigo 53, que textualmente estabelece que os parlamentares são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. Então, a discussão sobre a extensão das prerrogativas parlamentares, também na perspectiva civil, precisaria ocorrer no foro especial. Na pior hipótese, em aplicação analógica à tese decidida no âmbito da AP 937-QO, o foro se aplica às causas civis que versem sobre atos de parlamentares praticados durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.
Essa extensão (penal e civil) do foro se justifica tanto pela abrangência do texto constitucional mencionado, que cabe dentro da disposição normativa – esse ponto é importante: não se está criando uma nova hipótese de competência originária do STF via mera interpretação –, quanto pela necessidade de resguardar as prerrogativas parlamentares ante o crescente aumento de ações cíveis em que vêm sendo determinadas medidas que restringem o âmbito de atuação dos parlamentares.
Não custa lembrar que o principal objetivo da prerrogativa em comento é garantir que não se está diante de uma lide infundada ou temerária que pudesse servir como perseguição judicial dos parlamentares. O objetivo – como o de todas as prerrogativas parlamentares – é garantir a liberdade e a independência do mandato, tanto em face dos demais poderes do Estado, quanto de particulares ou adversários políticos.
Subjaz à regra a presunção de que os tribunais teriam melhores condições de analisar os fatos, considerar as circunstâncias políticas e, eventualmente, impedir que se levem adiante causas ligadas à paixão política de forma geral. Nesses termos, o foro por prerrogativa é critério orientador do juiz natural e um dos elementos que compõem o devido processo legal.
A partir dessa lógica do foro, não condiz com a Constituição que juízes de primeira instância possam aplicar medidas cautelares que afetam o exercício do mandato parlamentar. A natureza cível da ação não afasta a necessidade de que, à luz da separação dos Poderes e das inviolabilidades parlamentares, esse tipo de providência restritiva precisa ser determinada pelo tribunal competente. No caso dos parlamentares federais, o STF; e dos estatuais, o TJ correspondente.
Do contrário, estaria permitida a perturbação da função parlamentar, prejudicando o trabalho do Poder Legislativo. Bastaria seguir a estratégia de enquadrar a causa como civil.
É bem verdade que, compulsando o Direito estrangeiro, não são todos os ordenamentos que dão a extensão aqui defendida à prerrogativa de foro dos parlamentares. Na Constituição da Espanha, por exemplo, o artigo 71.3, estabelece que nas causas contra deputados e senadores será competente a Sala Penal do Tribunal Supremo. Aqui, por previsão explícita, o foro não se estende a causas civis.
Já na França, sequer foro por prerrogativa parlamentar existe, ou seja, eventuais processos correm nas instâncias ordinárias. Entretanto, como já explicado aqui, existe a possibilidade de suspensão do processo até o término do mandato, o que pode justificar a ausência da previsão do foro. Além disso, há a imunidade formal, sendo necessária a autorização da Mesa da Casa Legislativa a que pertence o parlamentar para a sua prisão ou processo penal.
Entretanto, na Inglaterra, berço das prerrogativas parlamentares, é sabido que entre as origens do freedom from arrest or molestation dos parlamentares estava a proteção contra prisões por dívidas, contratos ou transgressões de qualquer tipo, de acordo com o costume do reino. A prerrogativa nesses termos, reivindicada pela primeira vez em 1404, perdurou até o ano de 1869, quando se aboliu a prisão por dívidas no país.
Após citar vários casos concretos, assim registra Erskine May: “Desde os tempos mais remotos, portanto, a imunidade à prisão era considerada restrita aos processos civis. Na sua forma original, o privilégio era ainda mais amplo do que a imunidade à prisão. Os membros não eram “processados”, o que era feito para impedir que ações civis fossem movidas contra eles, devido à sua incapacidade de defender os seus direitos particulares enquanto estavam a exercer funções no Parlamento”.[1]
Mesmo sem a prisão por dívidas aqui no Brasil, essa lógica se mantém ante a possibilidade de aplicação de medidas cautelares diversas da prisão que interferem no exercício do mandato, como o próprio STF já entendeu ser possível na ADI 5526. Nada impede que medidas semelhantes sejam aplicadas na esfera civil.
Além disso, não custa recordar que o próprio STF já reconheceu o alcance do foro por prerrogativa a causas não criminais por ocasião da Pet 3.211-QO, quando estabeleceu que compete ao próprio STF julgar ação de improbidade administrativa contra seus membros, embora o texto da CF não diga uma palavra sequer a respeito.
No ponto, merece destaque o seguinte trecho do voto-vogal do ministro Cezar Peluso: “seria absurdo ou o máximo do contra-senso conceber que ordem jurídica permita que Ministro possa ser julgado por outro órgão em ação diversa, mas entre cujas sanções está também a perda do cargo. Isto seria a desestruturação de todo o sistema que fundamenta a distribuição da competência (…)”.
Não se desconhece o julgamento da ADI 2.797, em que se discutiu a constitucionalidade do artigo 84, § 2º, do CPP, incluído pela Lei 10.628/2002, que estendeu a prerrogativa de foro para as ações de improbidade. No caso, o STF considerou inconstitucional o referido dispositivo legal, pois só a CF poderia tratar da matéria. Ocorre que a presente discussão não trata – insista-se – de uma ampliação por lei (ou por interpretação) de uma competência constitucional. A rigor, desde sempre o artigo 53, § 1º, da CF, tem essa extensão.
O reconhecimento do alcance do foro por prerrogativa parlamentar a causas civis (ainda que não as de improbidade, por causa do citado entendimento do STF) se dá por coerência na interpretação da Constituição: não se pode atribuir a juiz de primeiro grau o poder para aplicação de medidas cautelares que limitam o exercício do mandato parlamentar, ainda que em ações de natureza civil.
Essa discussão não é mera elucubração teórica. Como se dizia, há cada vez mais decisões fora da esfera penal, no âmbito cível, com determinações restritivas que interferem diretamente no desempenho do mandato parlamentar. Cite-se só um exemplo dessa distorção: a decisão do último dia 13 de junho tomada no processo 0824353-24.2023.8.19.0014, em trâmite na 3ª Vara Cível da Comarca de Campos dos Goytacazes (RJ).
In casu, o juízo determinou que os parlamentares réus “se abstenham de adentrar no espaço de repartições públicas do Município de Campos dos Goytacazes para praticar quaisquer atos de fiscalização, apreensão de documentos, equipamentos e/ou dados, bem como a condução de servidores para delegacias de polícia ou qualquer outra instituição, sem flagrante delito, bem como promoverem a filmagem de instalações internas e/ou transitar por áreas restritas aos servidores e gestores do Município, sem prévia autorização da respectiva Casa Legislativa, sob pena de multa de R$ 50.000,00, para cada réu, por ato praticado em desconformidade com o presente decisum”.
A ação envolve tema similar ao tratado em coluna passada, em que se apresentou a decisão do TJRJ que declarou inconstitucional norma da Constituição estadual que permitia aos parlamentares exercerem fiscalizações em caráter individual. Porém, no recente caso, três integrantes de uma comissão especial, formada por cinco membros, realizaram uma diligência externa em conjunto. Daí, já não mais individualmente, mas sim em comissão, os parlamentares procederam às fiscalizações in loco.
Como se vê, nesse episódio, tem-se uma decisão judicial na esfera civil tolhendo a liberdade de ir e vir dos parlamentares no exercício do mandato e em nome de uma comissão parlamentar criada por requerimento aprovado na Casa Legislativa. Uma determinação dessa natureza não deveria poder ser decretada por um juiz de primeiro grau e de forma monocrática, mas apenas por um tribunal e, de preferência, de forma colegiada.
[1] No original: “From the earliest times, therefore, freedom from arrest was regarded as confined to civil suits. In its original form, the privilege was even wider than freedom from arrest. Members were not ‘impleaded’, which was takes to prevent civil actions being maintained against them at all, by reason of their inability to maintain their private rights while in attendance upon Parliament”. (MAY, Erskine. Parliamentary practice. 25th edition. London: LexisNexis, 2019, p. 247).